Encontro entre as águas do rio Negro e do rio Solimões em Manaus, AM.

História originalmente contada por uma aluna indígena do Curso de Pedagogia, da Universidade Federal do Amazonas, e recontada, aqui, por Carlos Humberto Alves Corrêa. O pedido de reconto da história foi feito por Aline Janell, aluna de Estágio Docência, na Disciplina de Literatura Infantil, no Curso de Pedagogia – UFAM, como contribuição ao Núcleo de Alfabetização Humanizadora – NAHum.

Esta é uma história de encantamento. Uma história de boto. Tomei conhecimento dela por intermédio de uma aluna de pedagogia que cursava a disciplina Literatura Infantil. Ela era indígena, mas preferia manter isso em segredo com receio de ser discriminada pelos colegas de turma.

Certo dia, depois de finalizada a aula em que problematizamos alguns aspectos sobre as mais correntes narrativas de ribeirinhos e indígenas de nossa região (histórias de cobra-grande, curupira, Yara e boto), essa aluna me abordou na saída da sala. Parecia apreensiva. Mesmo assim, vencendo a timidez, disse que queria me contar uma história que ela havia testemunhado quando ainda morava em uma cidade do interior do Amazonas. A sua forma de contar não deixava dúvida de que aquela história lhe pertencia. Fazia parte de sua experiência de vida. E eu me senti privilegiado de ter sido escolhido para ouvir a história narrada pela voz da minha aluna que quase nada falava. É essa história que tentarei recontar neste texto.

A história se passou em um vilarejo, localizado próximo à sede do município. Lá viviam indígenas que saíram de sua aldeia em busca de trabalho, de assistência à saúde ou de possibilidades de continuidade dos estudos de seus filhos.

Encantamento de boto

Em uma tarde de verão, a pedido da mãe, uma jovem indígena, moradora desse vilarejo, foi até a beira do rio para lavar a roupa da família. Entretida com seus afazeres, a menina não percebeu a aproximação de um boto. Cada gesto de esfregar ou enxaguar a roupa era atentamente observado pelo boto que aguardava o melhor momento para se revelar.

Do alto de um barranco, moradores avistaram o boto cercando a jovem e deduziram suas intenções. Trataram de gritar para que ela saísse imediatamente da beira do rio. Ouvindo os gritos aflitos dos parentes, a jovem obedeceu aos apelos, mas antes que saísse completamente do rio, olhou para trás a fim de se certificar do que estava acontecendo. Foi justamente neste momento que o boto, olhando fixamente para os olhos da moça, lançou sobre ela o seu encanto.

A força do encantamento não tardou a se manifestar. Após o jantar, a jovem adormeceu em sua rede e de lá não conseguiu se levantar. Os dias foram se passando e nenhuma melhora ocorria, mesmo depois da visita de um agente de saúde indígena. Os parentes sabiam que aquilo não era mal do corpo.

Por isso, alguns deles foram até a aldeia para se aconselharem com o pajé. Queriam saber o que poderiam fazer para tirar a moça daquele estado de desânimo. Depois de ouvir atentamente o relato do ocorrido e ficar em silêncio, o pajé ordenou que a jovem fosse trazida até ele.

E assim foi feito. No dia seguinte, a moça foi levada até sua aldeia de origem. Por ordem do pajé, deitaram-na em uma rede no interior da casa sagrada. Apenas a mãe da menina e três anciãs foram autorizadas a entrar e acompanhar o ritual sagrado que ali passou a acontecer. Defumação e banho de ervas foram utilizados para que o pajé tivesse a perfeita visão do que tinha ocorrido com a moça e qual o caminho que deveria ser seguido. Ao final do dia, o pajé confirmou o que até então era apenas uma suspeita. A menina havia sido encantada pelo boto e levada para morar no fundo do rio.

Durante a noite, o pajé se preparou para ir ao encontro da menina e nas primeiras horas da manhã começou a sua viagem. Seu corpo, estirado ao lado da rede da menina, permaneceu imóvel durante todo o dia. Foi só na boca da noite que o Pajé voltou. Apossou-se novamente do seu corpo. Levantou-se e, ainda exausto, disse que havia trazido a menina com ele. Segundo ele, a menina se preparava para casar com o boto. Ia morar pra sempre nas profundezas do rio. O pajé disse que a menina só voltou por causa do amor que tinha pela mãe.

Antes de se retirar, o pajé avisou que ninguém acordasse a menina. Ela precisava dormir o sono do esquecimento, segundo ele. A menina acordou como era antes de ser encantada.

Por orientação do pajé, ninguém fala desse assunto com ela. É para não ter risco de o encantamento voltar.

Boto cor-de-rosa do rio Negro, Amazonas