A BOTINA

Adriana Pastorello Buim Arena

História criada a partir de um relato oral de Adelaide Miani Pastorello

Cansado e desaminado, ele abriu o portãozinho e seguiu pelo corredor lateral da casa. No caminho vinha Pitoco, tão alegre com a chegada do dono, que pulava sem parar demonstrando sua fidelidade. Nesse dia ele não brincou com o cachorrinho como era de costume. Chegou à porta da cozinha mancando e se sentou num banco de madeira que outrora tinha feito. Pitoco logo percebeu que alguma coisa não estava bem e encontrou o problema. Começou a lamber o dedão ensanguentado do dono.

– Homem de Deus! O que foi isso? – Sua mulher, aflita, lhe pergunta.

– Eu já te disse, tenho que arrumar um jeito de comprar uma botina nova. É muito perigoso trabalhar na carpintaria com os dedos de fora. Hoje mesmo o formão caiu bem de ponta em cima do meu dedão. Se minha botina não estivesse nesse estado, teria evitado o corte. O patrão tá reclamando comigo, disse que se eu me machucar a culpa será minha e vou ter que arcar com as despesas. Ele disse que botina é item de segurança e responsabilidade do trabalhador, mas com esse salário de fome, mal a gente passa o mês, quem vai comprar botina!?

A esposa, repleta de compaixão pelo marido, comentou:

– Eu fiz toda a economia que pude, coloquei cevada no café para render mais, estou limpando as panelas com a areia fina do Tijuco, tenho dado pão e leite para as crianças somente pela manhã, no lanche da tarde faço um chá de hortelã com um pouco de farinha de milho, tenho feito como mistura somente o que a horta produz, apenas no domingo faço frango, mas estamos muito longe de conseguir o dinheiro para a botina. Já fiz a pesquisa de preço e o melhor é o do seu Nelson sapateiro.

A esposa abaixou-se e cuidadosamente tirou a botina para que não ferisse ainda mais o dedo. A unha estava solta. Pegou uma bacia, colocou dentro dela o pé do marido e jogou querosene no machucado para não zangar.

Tonho, depois de um tempo sentado com as costas na parede e o pé na bacia, disse para a mulher:

– Eu acho que sei como conseguir o dinheiro para a botina nova. Vamos engordar um leitãozinho e depois de grande e de gordo a gente pode vender o bichinho. Metade do porco será para nossas refeições e a outra metade venderemos para o Zé bucheiro. A gente junta lavagem, planta abóbora a mais, pega fruta já passada, cozinha mamão verde e assim a gente engorda o porco sem gastos.

– Mas nós não temos porco, nem dinheiro para comprar um!

– Vamos lá no Belmonte, ele deve ter algum bem barato e com o dinheiro da economia que você fez, talvez consigamos comprar.

E assim se deu. Saíram naquela mesma tarde. Era verão, já passava das seis horas, mas o sol ainda não dormia.

Seu Belmonte era um anjo de pessoa! Conhecia o Tonho carpinteiro e sabia de sua lida. Ele também lutava com a vida, não podia se dispor dos melhores leitões sem receber nenhum troquinho. Doía em seu coração pegar o dinheiro suado da economia do pobre trabalhador e decidiu dar a ele o leitãozinho mais fraquinho que tinha no chiqueiro. Já alguns compradores o tinham rejeitado. Seus olhinhos estavam remelentos e tinha uma diarreia que parecia incurável. Ainda não era desmamado.

A dona Adelaide pegou o porquinho no colo embrulhado num saco de estopa e subiu na carroça toda feliz e cheia de gratidão. Era uma possibilidade de melhorar um pouquinho a refeição de cada dia e resolver o problema do marido, que corria o risco de ser mandado embora do serviço por falta de botina nova. O casal parecia ter ganhado na loteria! Vinham radiantes. Tonho até esqueceu a dor latente do dedo machucado; cantarolava como os passarinhos.

Como bom carpinteiro que era, chegou em casa e, mesmo estando escuro, foi logo separar troncos e pedaços de madeira que estavam no quintal, porque no dia seguinte, depois do serviço, começaria a fazer um chiqueiro.

A pobre mulher correu esquentar água no fogão a lenha, que sempre estava acesso, para dar um banho no porquinho. Colocou-o dentro do tanque e usou até do sabão que estava economizando na limpeza das panelas. Lavou bem seus olhinhos e colocou colírio de gente. Depois pegou a mamadeira, que as crianças já não usavam mais, ficou um pouco preocupada, porque poderia, no futuro, ter outro filhinho que precisasse dela, mas diante do indefeso porquinho, não hesitou. Amassou um comprimido, de gente, de dor de barriga, misturou no restinho de leite morno do canecão, que ficava sempre no canto do fogão, e deu para o porquinho, que recebeu com muito agrado aquela restauração.

Naquele dia, o leitãozinho ficou numa caixa de madeira que o carpinteiro usava para guardar suas ferramentas. Ele a esvaziou, forrou com um pano de chão e colocou o animalzinho em sua nova cama. Ele dormiu a noite inteira. Todos dormiram bem. E no dia seguinte, o carpinteiro começou o chiqueiro.

No prazo de quatro finais de tarde o chiqueiro tinha até cocho para a comida. Uma belezura! A água ficou numa cuia grande que ele pegou na árvore da pracinha do Fórum e a serrou ao meio. Tudo limpo, tudo pronto como se fosse um palácio para porcos.

Todos os dias Adelaide cuidava do porquinho que crescia forte e saudável. Ela dava banho nele e ele a deixava acariciá-lo, o que não é muito comum em se tratando de porcos.

Com que capricho ela apanhava os mamões ainda verdes para cozinhá-los e misturar nas poucas sobras que sua lavagem recebia! Eram apenas cascas que a compunham. Todos precisavam comer e a comida era pouca. O pai, a mãe e os dois filhinhos cada vez mais se apegavam ao novo membro da família. E assim o porquinho, que até nome tinha, o Chico, foi crescendo e engordando.

Como de costume, à noite, a família varava a cerca, e, na casa dos avós, se reuniam na beira do fogão a lenha para assar milho e jogar conversa fora. Naquela noite o vô perguntou:

– Já não está na hora de matar o porco, Tonho?

O silêncio reinou. Uma tristeza pairou no ar. Todos sabiam que a pobreza forçava a matança do pobre animal. Uma desgraça puxa a outra.

– É pai, tá sim. O senhor pode me ajudar amanhã depois do almoço? Eu não vou conseguir sozinho.

– Tá certo. Prepare tudo. Deixe a lata de vinte litros no fogareiro, precisaremos de água quente. Tire do quartinho tua mesa de carpinteiro e coloque lá fora no quintal. Ela facilitará a lida com o porco.

Ninguém disse mais nada. As crianças não quiseram comer o milho assado aquela noite. Atravessaram pela abertura da cerca e já estavam em casa. Era melhor não ter ido na casa do vô, pensavam as crianças. Todos se deitaram, mas não conseguiram dormir.

No domingo depois do almoço meio fraco que nem descia bem pela garganta, a mãe e a filha saíram para a rua e foram até a esquina. De lá escutavam os gritos de agonia do pobre Chico. O pai e o filho ficaram vendo o avô, dentro do chiqueiro, com a faca bem afiada, a encerrar com aquele tormento. O Chico se foi.

Todos sabiam que tinham trabalho a fazer. Cada um fez sua parte. A avó recolheu o sangue e foi tratar de preparar o chouriço, a dona Adelaide trazia a água quente para escaldar o porco, enquanto os dois homens raspavam com a faca para tirar todo o pelo. Depois disso, usaram água e sabão para limpar bem o pobre corpinho já tão maltratado. De súbito, a pobre mulher, desolada, abandonou o quintal e dentro de casa, chorou. Ficou ali perto do fogão a lenha, imóvel, de cabeça baixa.

A lida continuava.

Os homens começaram a cortar o porco. As crianças esperavam pela barrigada; era preciso limpar bem as tripas para dar um bom sabão. Elas fizeram tudo direitinho. A menina segurava a tripa e o menino jogava água dentro dela com uma canequinha. Toda a sujeira ia embora.

A avó, percebendo a tristeza de Adelaide, entrou na cozinha e a viu com os olhos vermelhos.

– Oh, minha filha, a vida é assim mesmo. A gente se afeiçoa ao animal, porque cuida dele como se fosse nosso filhinho. Mas pense, se você não tiver o que dar de comer a seus filhos, eles não vão crescer, vão adoecer. Teu Toninho precisa da botina; o trabalho dele é o sustento de vocês. Venha me ajudar a fazer o toucinho. Essa tristeza passa, minha filha.

Dona Adelaide sabia de tudo isso. Só precisava estar um pouco só e colocar a tristeza para fora em cada lágrima derramada e assim tornar a dor no peito suportável. O amigo se foi; ela tinha de aceitar.

Em passos lentos voltou ao trabalho. Ela picava o toucinho e jogava na máquina caseira de moer carne que ficava fixada na mesa, a avó fritava os pedaços no tacho quente e o Tonho apertava bem o espremedor cada vez que a escumadeira trazia a fartura que o amigo lhes deixou de herança.

Enquanto o trabalho continuava, o avô pegou a carroça, ajeitou bem a metade do porco já limpo, pronto para ser vendido e foi entregar, conforme o combinado, para o Zé bucheiro. O dinheiro queimou na mão do vovozinho, que também amava o Chico. Mas ele não chorou; era calejado pelas adversidades da vida pobre.

O pagamento pela metade do porco era o justo para comprar a botina! Seguiu com a carroça até a casa do Nelson sapateiro. Deixou a soma nas mãos do homem. A medida ele já tinha tirado na sexta-feira, quando Tonho passou por lá. No dia seguinte a botina começaria a ser feita.

Adelaide deu um pedacinho de carne para cada vizinha, porque elas sempre dividiram com ela a pobreza que tinham. Agora era a vez de ela dar-lhes um agrado.

Todo dia, na hora da refeição dispunha de seu pedaço para os filhos. Não podia comer daquela carne, era do Chico.

Em quatro dias a botina ficou pronta. Adelaide foi buscá-la. À tardezinha, quando Antônio chegou, encontrou a botina ao lado do banco de madeira que outrora tinha feito. Ficou feliz, calçou-a, serviu-lhe confortável e perfeitamente. O emprego estava garantido. Adelaide espiava tudo do vitrô da cozinha e chorou baixinho.

Ilustrações de Yasmin de Oliveira Santos Torres, 8 anos.