Giovani Manoel da Silva mora em Catalão, Goiás. Na sua infância e juventude, ouviu muitas crenças e histórias pelos sítios e fazendas no cerrado. Ouçam o belíssimo áudio em sua própria voz, editado com sua autorização, antes de lerem a história recriada literariamente por Dago Arena. Há muitas crenças, como estas das gameleiras, que podem ser recriadas para que sejam preservadas as memórias de famílias, de povoados, de pequenas cidades e de regiões do Brasil.

 

Áudio original: Giovani Manoel da Silva
Montagem: Adriana Pastorello Buim Arena

 

 

Na terceira gameleira

Dago Arena

O cemitério daquelas bandas, nos fundões de Catalão, sertão de Goiás, era distante da casa de João Jacinto, o homem da vez. Não era homem pequeno. Morreu infartado, forte, grandão, cheio de saúde, como diziam no velório os conhecidos, diante do caixão em cima da mesa da sala, e pelo terreiro, espalhados entre comentários e lembranças.

— O caixão foi feito com as tábuas guardadas em caso de precisão. O homem era grande, as tábuas pesadas, o cemitério é longe! É morada não desejada! – comentou Zeca Mateiro, em voz baixa, sem a dirigir a ninguém.

— Tem as gameleiras, as três, antes do cemitério! Dá para descansar! —lembrou Bentão, alto e forte, com um jeito ressabiado ao lançar seu olhar para os outros.

— E se a gente não aguentar o peso, a gente dá uma sova para aliviar! — completou Zeca Mateiro.

Fazia calor em dezembro, sem chuva, sol de rachar mamona no pé.

— Marcaram para quando? – perguntou Zeca Mateiro, preocupado.

— Meio-dia, depois do café, para voltar antes da janta! – mastigou alguém.

— É preciso homem forte, mas não tem tanta gente aqui! ‑ alertou Bentão. — Zé do Cavalo Baio, vai na frente! Pega o cavalo e avisa que a gente tá levando o João Jacinto. Junte gente para ajudar, recomendou Bentão, experiente em carregar caixão pesado.

Zé do Cavalo Baio juntou o cavalo, meteu as esporas e saiu para cumprir a tarefa. Estava acostumado a juntar gente nas gameleiras em dia de cortejo.

Pouco depois das onze horas, rodaram a bacia de pão fornado na hora, os bules de café e as xícaras, poucas para muitas bocas. Era hora do preparo para a escolha dos homens das alças feitas de corda grossa. Fechado o caixão, pregadas as tábuas e embrulhadas com um lençol branco-amarelo corroído por traças, Bentão gritou:

— Quem pega até a primeira gameleira?

Quatro levantaram rapidamente as mãos. Até a primeira, João Jacinto estaria mais leve, como rezava a tradição. Depois da primeira, à medida que a morada se aproximava, o peso crescia, crescia. Zé Tonho, Bié da Baixada, Mané do Cavaco e Zé Pimentão pegaram nas alças. Puxaram-no da mesa, entre choros e lamentos dos parentes acompanhantes do triste féretro. Botaram o pé na estrada poeirenta seguidos por um pequeno cortejo de mulheres em prantos e por outros acompanhantes sem lágrima alguma.

O sol do meio-dia queimava os chapéus e fazia suar a cabeça. Lenços amarrotados enxugavam testa e pescoço. O silêncio era quebrado por um triste canto de anum, pelo bater das sandálias na areia da estrada, ou por um gemido de algum dos carregadores. A primeira gameleira apareceu logo depois da terceira curva. Os quatro olharam para sua sombra, aliviados. Zé do Cavalo Baio estava lá, parado. O peso já tinha crescido desde a saída. O cortejo parou.

— Cadê o povo, Zé? – lançou Bentão a pergunta, olhando em volta.

— Não achei alguém folgado. Todo mundo na roça, respondeu Zé do Cavalo Baio.

Distribuíram moringas. Uma caneca amassada de alumínio rodou de boca em boca.

— Vamos trocar os homens, então, murmurou Zeca Mateiro. — Quem sabe, Zé, você encontra gente para a segunda gameleira!!

Zeca Mateiro, Bentão e Zozimbro pegaram. Faltava um. Zé Pimentão pegou de novo, mas pediu os pés, porque já tinha vindo na cabeceira, na frente. Esperto, sabia que depois da segunda seria pior. Depois da terceira, pior ainda. Juntaram as alças, levantaram o caixão com esforço dobrado e partiram para a sombra da segunda gameleira. Zé Pimentão nos pés, do lado direito, com menos peso.

Passo a passo, João Jacinto crescia no caixão. A segunda gameleira sombreava a estrada depois da subida. Bentão, na cabeceira, na frente, suava, mas não gemia. Zeca Mateiro quieto, nos pés do lado esquerdo, prenunciava o que seria preciso fazer, em silêncio, na terceira gameleira. Zozimbro, forte como um touro, bufava de vez em quando. Feito um pimentão, Zé escondia do sol ardente o rosto avermelhado.

Ao chegar na segunda gameleira, o féretro estacou, o caixão foi posto no chão, a moringa rolou de mão em mão, a caneca de boca em boca. Um olhava para o outro, com receio no olhar.

— Cadê o Zé do Cavalo Baio? — perguntou Bentão.

Cavalo suado, boca espumando, freio puxado, Zé chegou ofegante e soltou, em palavra gritada, a nova, que não era boa:

— Ninguém! Cada um com sua história! Ninguém pode hoje!

Os homens entreolharam-se porque sabiam o que lhes esperava na terceira gameleira.

— Fica pesado cada vez mais, — disse Zé Pimentão, que já tinha feito a primeira gameleira. Sem sova não vai dar não! Bota o cavalo no caminho, Zé. Junte gente, pelo amor de Deus!

Zeca Mateiro só observava as mãos dos companheiros e os lamentos. Quieto, já pensava na solução!

— Vamos gente! – gritou Bentão, sem esmorecer. — Vamos de novo! Quem pega?

Zé Tonho, Bié da Baixada e Mané do Cavaco se aproximaram. Quem veio na cabeceira, na primeira, foi para os pés, na segunda. Faltava um na cabeceira. Zozimbro bufou, pegou as alças. Saíram os quatro. O resto atrás. Velhos, crianças e mulheres seguiam, quietos, admirando os homens, rezando para o peso não aumentar. Parecia não haver jeito não. Zé Tonho ameaçou esmorecer. Bentão disse que não podia trocar de gente entre uma gameleira e outra. Se fizessem isso, iria aumentar ainda mais o peso. João Jacinto começou pesado, mais as tábuas pesadas, mais a caminhada na estrada, mais o sol queimando, mais a velha crença do aumento de peso, tudo junto somava muito.

A copa da terceira gameleira começou a aparecer no fim da descida. O cemitério no alto, no topo, depois dela mostrou suas cruzes. Trezentos metros, se tanto. A descida ajudou quem estava nos pés e desajudou quem carregava a cabeceira. Na cabeceira, inclinada para frente, era preciso botar força para segurar. O peso empurrava o caixão para a frente. Os pés dos carregadores grudavam no chão. Corriam o risco de escorregar na areia fina do chão duro.

A sombra enorme da terceira gameleira logo aninhou todo mundo. Nem sinal de Zé do Cavalo Baio. Uns esfregavam as mãos umas às outras. As crianças buliam nos galhos, dependuradas. As mulheres distribuíam moringas. Os carregadores nem tomavam água na caneca. Debruçavam as moringas nos ombros e bebiam a goles doidos, lambuzando de água a boca seca. Ouviram-se galopes! Poque-te-poque, poque-te-poque!!! Só poderia ser o Zé com gente!

Era ele mesmo! Freou o cavalo na sombra da gameleira, estancou o poque-te-poque. Deu a sentença final! — Ninguém, nenhum, alma alguma!

Zeca Mateiro, sábio e respeitado, sentenciou o que havia prenunciado, sem querer receber não: — Então, só sovando para aliviar o peso!

Cortou um galho novinho de um arbusto do cerrado, molinho. Fez dele uma varinha vai e vem, vem e vai. Deu três sovadas na cabeceira do lado esquerdo do caixão. Passou a Bentão a vara. Deu suas três. Zozimbro deu duas nos pés, sem muito jeito.

Zeca Mateiro alertou: — Se não der três, o peso não alivia! Quem sova do outro lado? – perguntou, olhando diretamente para Bié da Baixada. Bié deu suas três sovadas no caixão. A uma ordem de Zeca Mateiro todos o puxaram, juntos, do chão.

Nenhum dos quatro gemeu! Ninguém bufou! Entreolharam-se com olhar de surpresa e de espanto! Zeca Mateiro sorriu satisfeito.

João Jacinto tinha ficado, pela sova, leve. O peso sumira com as sovadas da varinha do cerrado como rezava a tradição. A subida para o topo foi rápida. O pequeno cemitério estava lá com a cova já aberta pelo Genor Coveiro, que enfiou as cordas compridas nas alças e orientou a descida do caixão levinho, levinho. Puxou as cordas de volta e João Jacinto pôde então descansar em paz, leve, leve, para subir aos céus. Uma reza final, uns punhados de areia sobre o caixão, o trabalho rápido de Genor. Tudo acabado!

O sol das quatro ainda queimava a pele. A janta das cinco esperava cada um dos carregadores, em casa. Um para um canto, outro para outro, sumiram todos pelas veredas. Zé do Cavalo Baio sumiu por um atalho. Zeca Mateiro, na vereda de casa, entre pedras e raízes do cerrado, caminhava quieto, pensando no que tinha se passado na terceira gameleira.

Ela ainda está lá, frondosa, nos fundões de Catalão, no sertão do cerrado de Goiás.