Áudio de Roberto

Um tatu garimpeiro – Texto em 3ª pessoa

Dagoberto Buim Arena

 

Em Niquelândia estava difícil ganhar a vida. Bertim via o pai preocupado em botar comida na mesa. Um dia, o velho Pedrão, à tardinha, quase boca da noite, olhou bem para longe e soltou:

– Vamos simbora daqui. Vamos lá pros lados de Alto Paraíso furar buraco para achar cristal. Lá vamos bamburrar!!
As histórias de garimpeiros que tinham bamburrado chegavam aos ouvidos dele, todo santo dia. Isso o animou. Todo mundo falava nas minas de cristal de Alto Paraíso.
Juntaram os trens de casa, puseram na carroça e foram todos, cerradão afora. Cansaço, fome, sede e suor acompanharam a família toda, uns na carroça, outros nos burros.
Sem casa, armaram uma barraca num morro de onde dava para ver a cidade lá embaixo, casinhas perdidas, espalhadas aqui e acolá. Ali se arrancharam na esperança de bamburrar.
Ajeitados os cantos de cada um, Pedrão botou os filhos para procurar pedra. Ensinou a olhar para o chão e a ver sinais. Para não passarem fome, começou um roçado, fez um cercado e botou lá cabrito e vaca.
Garimparam muito. Pedrinha pequena e pouca. As esperanças de bamburrar morriam a cada pôr-do-sol.
Um dia, quatro da tarde, a velha Lourença gritou:
– Bertim, vai buscar lenha no cerrado pra cozinhar!
Era costume. Bertim, experiente em seus 14 anos, pegou uma corda para amarrar o feixe de pau, uma faca e machado. Saiu mais Ciço, seu irmão, para procurar pau seco. Tudo era cerrado e era tempo de seca brava. Os morrotes do cerrado, fontes de cristal, se enfileiravam bem longe do olhar. Era um cerradão que se perdia de vista.
Bertim arrastava o pedacinho de corda pelo chão, procurando pau seco que pegasse fogo logo. Ciço vinha atrás, no trilho feito. Sair fora do trilho conhecido era preciso, porque já não tinha mais pau de lenha na beirada. Todo dia era pegar pau. Cada dia mais longe, cada vez mais fora dos trilhos.
Nesse dia, Bertim, na frente de Ciço, saiu pelo meio do mato nunca pisado, arrastando a corda. Olhando pro chão de areia seca, meio preta, cabeça baixa, viu rastros frescos de bicho. Era de tatu! Ele estava procurando lenha para cozinhar e acabou encontrando o rastro do bicho que poderia ir para a panela. Se animou e parou de olhar para os rastros. Seguiu as marcas das patinhas, olho focado na areia. Ciço caminhava mais atrás! Bertim tinha aprendido com o velho Pedro a pegar tatus.
– Vem, Ciço, que tem tatu!! – gritou.
Ciço se aproximou com passadas leves, pés descalços, para não fazer barulho!
– E é! – confirmou.
Bertim fez sinal para que fosse devagar, mais atrás, cuidadoso. Recolheu a corda. Seus pés nus pisavam devagar na areia e nas pedras. Andou um pouco mais, passou por baixo de um galho retorcido. Topou com uma moita de arbustos. Abriu passagem com a mão, olho no chão. Nem percebeu o seu pé esquerdo se enroscando em uma raiz despregada da terra. O pé direito foi, o esquerdo ficou na raizeira. Tropeçou e deu de boca no chão, corda e machado na mão. Com a boca suja de areia, viu diante de seus olhos um amontoado de terra preta arrancada pelo tatu de seu buraco.
– Achei o buraco, Ciço! O bicho deveaqui! – gritou, feliz, soltando areia pela boca.
Para ver melhor o buraco e cavar para pegar o tatu, afastou a raizeira com as mãos e com o machado. De repente, seus olhos brilharam. Não pelo buraco do tatu, nem pelo tatu que poderia ser pego. Ao lado do buraco, mais areia preta e com ela, misturados, brilhavam fagulhas de cristal limpo, como se lapidados já fossem. Com a voz engasgada, gritou:
– Ciço, se achegue.
– Pegou o tatu? ‑ perguntou o irmão, meio distante!!
– Ciço do céu, achei o buraco, mas não o tatu. Achei é muito cristal, Ciço!!! É um buraco de cristal, de um tatu garimpeiro!
Com alegria desesperada, meteram as mãos no chão, revolvendo areia e recolhendo fagulhas.
– Onde vamos guardar os faguio, Bertim? Não tem picuá!!! – Não dá pra cavar com a mão não, Bertim! Vamos marcar o lugar e voltar com pá e saco! Tá cedo ainda. O dia não começou a turvar!!
Com o machado e a faca, Bertim lavrou galhos e paus, marcou o trilho e o lugar. Ali não passava gente. Ninguém ia descobrir. Recolheram os paus secos de lenha para a mãe, fizeram um feixe, amarraram na corda bem, enfiaram umas fagulhas nos bolsos, e voltaram, mais rápido do que foram, pulando pelos trilhos.
Largaram o feixe no quintal para a mãe acender o fogo quando chegasse do roçado e botaram as pedrinhas num canto da barraca. O velho Pedrão não tinha chegado também. Ainda tinha luz no sol. Dava para voltar para cavar o buraco com chibanca e enxadão. Dava tempo de fazer uma surpresa para o pai.
Logo encontraram o trilho marcado, os paus talhados e o buraco do tatu. Meteram o enxadão e a picareta. Arrancaram areia com a pá. Cortaram a raizeira com o enxadão. Nada de tatu. Nem queriam mais achar o tatu. Era o cristal a caça. Os corações disparavam!
– Vamos bamburrar, falava Bertim, enquanto cavava.
Entre as fagulhas, apareceu uma pedra maior. A arrancaram com cuidado, limpando até sair inteirinha, grande, brilhante. Nem acreditavam! Bertim e Ciço, dois meninos, tinham descoberto uma mina de cristais!! Entusiasmados, cavaram mais e saiu outra pedra quase do mesmo tamanho.
O dia começou a turvar e o sol a se pôr.
– Vamos pra casa, Ciço. muito turvado já.
Juntaram as ferramentas e ajeitaram as pedras nas costas, cada um com uma. Elas brilhavam atingidas pelo sol mortiço do cair da noite. O coração menino de Bertim brilhava ainda mais, ansioso para mostrar a descoberta ao pai.
Puseram as duas pedras num canto. O velho ainda não tinha chegado do roçado. Banharam-se no córrego de águas ligeiras e frias como todos da Chapada, com um pedaço de sabão. Bertim e Ciço tiraram a poeira, esfregaram os pés. Já era dia turvado de velho. Na volta do banho, lá estavam pai e mãe, ela mexendo na lenha e ele na tina de água.
– Descobrimos umas pedras! – anunciou, discretamente, Bertim, acostumado com o fracasso das descobertas.
– Pedras! Cadê? – perguntou o velho, curioso.
– Ali, no canto.
Ao vê-las, seus olhos cresceram. Bertim e Ciço se entreolharam, agora animados!
– Menino, é pedra bonita! Lá tem é mais?! Acharam onde?
– Um quilômetro daqui, num buraco de tatu. Quem descobriu foi um tatu! Tava procurando lenha, vi o buraco e os faguios de pedra brilhando na areia! – disparou, rápido, Bertim.
– Menino! Amanhã cedo vamos lá! – gritou, animado, o pai.
Bertim não dormiu direito naquela noite. Ficava imaginando todos bamburrando, afastando o azar que os acompanhava desde Niquelândia. Nem bem a escuridão da noite tinha ido embora e ele estava em pé, esperando o café da mãe. Quando ela falou tá pronto, engoliu o café com um pouco de cuscuz.
O pai alinhou no chão as ferramentas. Eram quatro agora. Bertim, Ciço, o pai e mais outro irmão. Confiante, Bertim mostrava o caminho, pisando firme. Entra aqui, sai ali, acompanhando a marcas deixadas, os paus lavrados, deram de cara com o buraco do tatu, já meio escavado. O pai, experiente garimpeiro, examinou bem, riscou um quadrado em volta e começaram a cavar com cuidado. Foi só tirar a terra preta, afundar o buraco e afastar a raizeira que apareceu pedra. E foi ficando fundo o buraco. Nada de tatu. Só pedra. Naquele dia tiraram muita. No dia seguinte mais ainda. Deu uns quatro ou cinco metros de fundura.
– É pedra pequena, grande, de todo tamanho! – contava o pai em casa!!
Logo a notícia correu. Aí veio gente de todo lado furando a terra. Todo mundo achou um pouquinho, mas ninguém como a mina de Bertim.
Não deu para bamburrar. Depois desse buraco, foram só fagulhos aqui e ali. Um dia, desanimado de novo, o velho pegou as pedras guardadas e as enfiou na capanga do burro.
– Vamos botar os trens na carroça. Vamos voltar para Niquelândia. E se foi.
Bertim ficou na entrada da barraca olhando a partida. Decidiu ficar para, um dia, topar com outro buraco de tatu e bamburrar.
Hoje não tem mais garimpo nem garimpeiro em Alto Paraíso. As pedras, o cerrado, os tucanos e os tatus agora vivem em paz. Bertim também. Daquela vida garimpeira restou essa história, a do tatu garimpeiro.

Cristal exposto sobre um no toco em Alto Paraíso de Goiás

Roberto com um fagulho de cristal na mão Alto Paraíso de Goiás

Fagulho de cristal nas mãos de Roberto Alto Paraíso de Goiás

Um tatu garimpeiro – Texto em 1ª pessoa
Dagoberto Buim Arena
Em Niquelândia tava difícil ganhar a vida. Papai resolveu tentar a sorte aqui em Alto Paraíso de Goiás. A gente escutava história de garimpeiro que tinha bamburrado. Isso animou ele. Todo mundo falava nas minas de cristal. Viemos e armamos uma barraca ali pra cima. Eu tinha 14 anos. Garimpamos muito, mas achamos só umas pedrinhas. A vida continuava dura. Um roçado e as criações do quintal que nos davam de comer. As esperanças de bamburrar morriam junto com cada pôr-do-sol.
Um dia, quatro horas da tarde, minha mãe gritou:
– Bertim, vai buscar lenha no cerrado pra cozinhar!
Era costume. Peguei uma corda pra amarrar o feixe de pau, uma faca e machado. Saí mais Ciço, meu irmão, pra procurar pau não muito longe. Não precisava ir longe para achar pau seco.
Moço, os morrotes tavam longe. Era um cerradão que perdia de vista. Eu ia arrastando o pedacinho de corda pelo chão, procurando pau seco que pegasse fogo logo. Ciço vinha atrás, no trilho que eu fazia. Eu tinha de sair fora do trilho conhecido porque já não tinha mais pau de lenha no trilho. Resolvi sair pelo meio do mato nunca pisado, arrastando a corda, e a arrancando dos enroscos.
Olhando pro chão de areia seca, meio preta, cabeça baixa, vi rastros frescos de bicho. Era de tatu! Eu tava buscando lenha pra cozinhar e encontrei rastros de tatu. Me animei! Parei de olhar pros paus e comecei a olhar as marcas das patinhas! E fui atrás! Tinha aprendido com o véio, meu pai, a pegar tatus.
– Vem, Ciço, que tem tatu!! – gritei.
Ciço se aproximou com passadas leves com pés descalços pra não fazer barulho!
– E é! – confirmou.
Fiz sinal para que ele ir devagar e eu na frente, cuidadoso. Recolhi a corda. Meu pé nu pisava devagar na areia e nas pedras. Andei um pouco mais, passei por baixo de um galho retorcido, topei com uma moita de arbustos, enrosquei um pé na raizeira, tropecei e quase dei de boca no chão.
Diante dos meus olhos, vi um amontoado de terra preta perto do buraco do tatu.
– Achei o buraco, Ciço! O bicho aqui!
Pra ver melhor o buraco, afastei uma raizeira. Moço, perto do buraco vi uns canudos de cristal, como esse aqui ó, misturado na terra preta! Na hora já pensei e gritei.
– Ciço, se achegue. Pra fazer a buraco, o tatu jogou cristal pra fora!! Tem de ter mais aí!
Cavamos com a mão, numa fundurinha assim, e achamos mais canudinhos de cristal, purinho, brilhante. Tiramos uns, mas foi sofrido.
– Não dá pra cavar com a mão não, Bertim! Vamos marcar o lugar e voltar depois!
Peguei o machado e a faca, lavrei galho e pau pra marcar o lugar pra gente voltar. Ali não passava gente. Ninguém ia descobrir. Recolhemos pau seco de lenha, fizemos um feixe, amarrei bem, pegamos uns canudinhos de cristal e voltamos pra casa.
Largamos o feixe no quintal pra mãe acender o fogo quando chegasse do roçado e botamos as pedrinhas num canto. Papai não tinha chegado. Ainda tinha luz no sol. Dava pra voltar pra cavar o buraco com ferramenta. Dava tempo de fazer surpresa pra ele.
Pegamos uma chibanca, um enxadão e voltamos, eu mais Ciço. Achamos logo a trilha marcada, os paus talhados e o buraco do tatu. Metemos o enxadão e a picareta. Fomos arrancando areia com a pá, puxando e cortando a raizeira.
Nada de tatu. Nem queria mais achar o tatu. Era o cristal que me interessava. Meu coração batia forte! Vamos bamburrar, pensava.
Cavamos e logo apareceu uma pedra. Arrancamos ela com cuidado, limpando até sair inteirinha, grande. Eu nem acreditava! Ciço mais eu, dois meninos, tínhamos descoberto uma mina de cristais!! Entusiasmados, cavamos mais e saiu outra pedra quase do mesmo tamanho.
O dia então começou a turvar e o sol a se pôr.
– Vamos pra casa, Ciço. muito turvado já.
Juntamos as ferramentas e ajeitamos as pedras nas costas, cada um com uma. Elas brilhavam com o sol. Meu coração de menino brilhava ainda mais, ansioso pra mostrar pra papai.
Chegamos, pusemos as duas num canto. Papai ainda não tinha chegado do roçado. Fomos então nos banhar no corgo com um pedaço de sabão. Era um corguinho, de águas ligeiras e frias como todos da Chapada. Era ali o banho. Eu mais Ciço tiramos a poeira e voltamos. Já era noite. O véio e a véia já tinham chegado.
– Descobrimos umas pedras!
– Pedras! Cadê? – perguntou curioso.
– Ali, no canto.
Seus olhos cresceram.
– Menino, é pedra bonita! Lá tem é mais é?! Acharam onde?
– Um quilômetro daqui, num buraco de tatu. Quem descobriu foi um tatu! Tava procurando lenha, vi o buraco e os faguios de pedra brilhando na areia!
– Menino! Amanhã cedo vamos lá, gritou animado!
Não dormi direito naquela noite. Ficava pensando que a gente ia bamburrar de vez. Nem bem a escuridão da noite tinha ido embora e eu tava de pé, esperando o café da véia, minha mãe.
Quando mãe falou tá pronto, tomamos café e comemos um pouco de cuscuz. Papai mostrou as ferramentas. Éramos quatro. Eu mais o véio meu pai, Ciço e outro irmão. Orgulhoso, fui mostrando o caminho. Entra aqui, sai ali, acompanhando as marcas deixadas, os paus lavrados, demos de cara com o buraco do tatu, já meio escavado. Papai examinou, riscou um quadrado em volta e começamos a cavar com cuidado. Era só tirar a terra preta e a raizeira que a pedra aparecia. E foi ficando fundo, fundo. Naquele dia tiramos muita. No dia seguinte mais ainda. Deu uns quatro ou cinco metros de fundura. Perigo de desbarrancar. Moço, era pedra pequena, grande, de todo tamanho.
Logo a notícia correu. Aí veio gente de todo lado furando a terra. Todo mundo achou um pouquinho, mas como nós ninguém achou não.
Papai guardou as pedras até o dia que veio o capangueiro lá do Rio de Janeiro comprar. Ele vendeu quase tudo e guardou umas lá.
Não deu pra bamburrar, mas valeu a pena ter vindo pra Alto do Paraíso.
Depois disso, foram só pedrinhas aqui e ali. Um dia, o véio meu pai pegou as pedras guardadas, enfiou na capanga do burro e voltou com mamãe e meus irmãos pra Niquelândia. Eu fiquei.
Hoje em dia não tem garimpo mais. Acabou tudo. Todos vivem em paz, a pedra, o cerrado, o tucano e o tatu. E eu também. Me restou de garimpeiro essa história do tatu garimpeiro.