Do rural ao urbano, lendas da região de Londrina
Rasga Mortalha e Circuito
Rovilson José da Silva
Sueli Bortolin
Paulo Tio (ilustrador)
A região de Londrina
Habitada inicialmente pelas etnias indígenas Guarani e Kaingang, a região norte do Paraná foi repovoada a partir da década de 1930, principalmente, por paulistas, mineiros e nordestinos, além é claro de famílias que vieram da Europa e do Japão. Surgiram os patrimônios, vilas e, posteriormente, as cidades que pouco se distinguiam da área rural. Uma das cidades referência dessa região é Londrina, a segunda maior do Estado e umas das maiores do sul do Brasil. A região teve início pela população rural. A partir da década de 1950 acelerou-se o processo de urbanização. Assim, parte das pessoas que vivia na zona rural mudou-se para a cidade. Nesse contexto, as histórias rurais (orais) transitaram entre o campo e a cidade, adquirindo contornos próprios em cada situação ou espaço.
Apresentam-se aqui duas histórias que se interligam pela memória de duas ex-crianças que advieram de contextos e épocas próximas na região de Londrina. Como numa trança, entrelaçam-se duas histórias: uma de cunho folclórico oral e, outra, de convivência, do cotidiano que transforma pessoa comum em lenda urbana.
Rasga Mortalha, o som da morte
Ali no interior do Paraná, durante o dia, o menino corria descalço ao vento, fazia muita leitura do campo e da colheita.
Árvores, animais e as histórias contadas pelos pais alimentavam sua vida.
A noite chega, o breu toma conta de tudo… a penumbra traz o mistério para a área rural. De repente, ecoa o barulho da mortalha, costurada em tecido forte e grosso de saca de café.
O menino ouve e cala. Um calafrio percorre seu corpo.
O menino convivia com a natureza, com os aninais noturnos e vinha aprendendo a interpretar aqueles sons. A noite era espaço fértil para sua imaginação.
Tudo ficava mais mágico, mais forte, misterioso!
Mortalha era uma coruja albina (acreditem: não é só gente que nasce albina!).
O pio da Rasga Mortalha que poderia ser encantador, virava algo assustador… os meninos, as meninas paravam de brincar e imediatamente obedeciam a mãe que, ao ouvir o voo e o pio da Rasga Mortalha, dizia:
– Entrem em casa e fechem a porta! Essa ave traz mau agouro! Ela está prevendo alguma coisa.
A mãe do menino disse que aquela ave voava rasante e se pousasse na casa de alguém, traria fatalidade ou morte.
Se a morte por si só já era triste, a tristeza aumentava e o medo também.
Como curiosidade de criança não tem tamanho e, apesar do medo, o menino perguntava:
– O nome vem de onde, mãe?
– O nome vem do pio e do som das asas que a coruja faz em seus voos.
E a mãe atiçava a curiosidade: Fiquem quietos (como se precisasse pedir isso!) e prestem atenção no som parecido com o rasgar de um tecido.
O menino não tinha certeza se alguma morte aconteceu nos sítios vizinhos em dias de visita da Rasga Mortalha, mas era fácil perceber que todos acreditavam, pois as crianças correriam rapidamente para dentro de casa ao ouvir o pio mais afiado da ave.
O menino se desloca no tempo, no espaço e se faz adulto, povoam sua memória sons, pios, poeira, plantações e raízes rurais que se misturavam aos paralelepípedos escorregadios da cidade.
Circuito, o som da vida
A menina urbana se deslocava a pé pela cidade. Carros eram para os ricos. Quando havia dinheiro, pegava o ônibus que circulava e cortava a cidade ainda com poucos bairros. Havia sempre a esperança de encontrar o fantástico “Circuito” fazendo kirigami com sua tesoura afiada.
Circuito era japonês, isso a menina sabia, estava estampado nos olhos. Mas ele era japonês mesmo? Sim, havia nascido no Japão, mas veio para Londrina muito pequeno.
Crianças e adultos o tratavam como um rei. Por admiração, mas também por medo, pois ele tinha um problema neurológico que dava uma tremedeira danada, quando ficava nervoso e impaciente.
Quem estivesse no ônibus sentado no banco antes da catraca já se levantava e cedia o lugar, pois ele tinha autorização da empresa para viajar gratuitamente.
Sentado ali, abria sua mala e começava a fazer bichos com os papéis coloridos: girafa, veado, cabrito, elefante, coruja…
As crianças que olhavam para ele com carinho ganhavam um kirigami de presente. Dos adultos ele cobrava uns trocadinhos; dos políticos e endinheirados ele “rasgava a carteira”, sem pena e nem dó!
Além de ônibus, Circuito gostava de Kombi. Seus pedidos de carona assustavam, pois pulava na frente dela e o motorista não tinha outra saída, pois ele já ia abrindo a porta e os que estavam dentro iam se ajeitando para caber mais um.
Como curiosidade de criança não tem tamanho e, apesar da timidez, a menina perguntava:
– Circuito? O nome vem de onde, mãe?
– Dizem que é por causa dos pulinhos que ele dá com sua mala de papelão no ombro, como se tivesse tomado choque elétrico.
Até hoje …
o menino tem em sua memória o pio da Rasga Mortalha,
a menina tem os tec tec tec da tesoura do Circuito,
sons de bicho de pena,
sons dos bichos de papel,
campo e cidade
que alimentam a imaginação.
Ouvir com todos os poros, despertar a pele para o contato com o mundo; descobertas da delicadeza e da sutileza, na contramão daquilo que nos cerca.