O BUMBA MEU BOI

Edith Maria Batista Ferreira

Sou maranhense, nascida e criada na cidade de São Luís, capital do Maranhão. Desde que me entendo por gente ouço falar do Bumba meu boi, a maior manifestação popular do estado, cuja origem remonta a muito tempo atrás. Foram os europeus que trouxeram o boi para as comemorações aqui no Brasil, visto que esse animal é cultuado e celebrado em ritos e festividades em diferentes continentes e tempos históricos.

Boi – Ilustração de Ricardo Pontes, 2021.

Na tradição cultural brasileira, o Bumba meu boi está relacionado ao ciclo econômico do pastoreio, no começo da vida colonial brasileira, datando do século XVII, quando existiam grandes centros de criação bovina na Bahia e em Pernambuco, mas que depois se espalharam rapidamente pelo nordeste do país, alcançando seu apogeu no século seguinte. O Bumba meu boi teria surgido nesta época, pelas mãos de trabalhadores da roça, gente humilde, geralmente negros escravos, mamelucos, mestiços. Há quem diga que ele nasceu em meio às lutas sociais, revoltas populares, agitadas pelos combates entre escravos e senhores.

O espetáculo do Bumba meu boi é sequenciado por toadas de naturezas diversas. As toadas são poesias de base popular que exercem importante papel no folguedo e fazem vibrar os Arraiais, locais onde acontecem a grande festa. Entoadas por representantes de uma comunidade, as composições demonstram enraizamento; emprestam sentido às experiências vividas; refletem modos de ver o mundo, objetos e processos; celebram acontecimentos; marcam fatos e pessoas.

A primeira toada é o Guarnicê, ela é cantada para preparar o grupo para iniciar a dança. Depois vem o Lá vai, que avisa os espectadores que a brincadeira vai começar. Logo em seguida tem a Chegada, anunciando a presença do boi no cordão. Quando o boi morre, no Auto da festa, porque a escrava Catirina deseja comer a língua do boi mais bonito da fazenda, obrigando seu companheiro a trazê-la, é cantado o Urrou, para celebrar a ressurreição do animal durante o Auto do Bumba meu boi, ápice da festa. E para finalizar tem a Despedida, quando acontece a retirada do Boi do terreiro e o grupo encerra a apresentação.

As toadas embalam a dança e representam diferentes sotaques, que são estilos marcados por instrumentos específicos: precursão, sopro, entre outros. Atualmente são cinco os sotaques que existem: Matraca ou da Ilha; Zabumba ou de Guimarães; da Baixada ou de Pindaré; Costa-de-mão ou de Cururupu; e sotaque de Orquestra. A matraca, instrumento de percussão mais conhecido no Bumba meu boi do Maranhão é composta por dois pedaços de madeiras, que batidos freneticamente um contra o outro, produz um som único e encantador.

Matracas – Ilustração de Ricardo Pontes, 2021.

O auto popular religioso Bumba meu boi mistura fé, festa e arte sob a influência dos principais grupos étnicos formadores do povo brasileiro: indígenas, negros e brancos. Denominado de “brincadeira”, reúne personagens que representam a vida no campo, as relações por lá estabelecidas e as transformações acontecidas com a vinda para a cidade. Embalados pelas toadas, eles realizam coreografias ensaiadas para as apresentações oficiais do folguedo, que começam em junho.

Esses personagens variam conforme o sotaque. Entre os principais estão: o Boi, protagonista, feito de armação de madeira, representando o animal, coberto de pano bordado, animado pelo miolo, homem que fica dançando embaixo da armação; Pai Francisco, o ladrão do boi; Mãe Catirina, a esposa grávida desejosa de comer a língua do boi; Amo, o fazendeiro ou dono do boi; os Vaqueiros, empregados da fazenda, que usam roupas de veludo e chapéus com longas fitas coloridas; Pajé, o curandeiro que ressuscitará o animal; Índias/os ou Tapuio/as, responsáveis por localizar o boi; Cazumbá (ou Cazumba) é o espírito que persegue o Pai Francisco por ter tirado a vida do boi precioso da fazenda; a língua Quibumbo, de Angola, significa duende ou fantasma que aparece à noite causando medo e fazendo travessuras; Burrinha, pequeno animal, com um furo no centro por onde entra o brincante e dança ao redor do boi; Caboclo de fita, brincante enfeitado com chapéu de fitas coloridas e que se misturam aos Vaqueiros durante a festa; Caboclo de pena, homem que usa grande chapéu coberto de penas coloridas.

Caboclo de Pena – Ilustração de Ricardo Pontes, 2021.

A HISTÓRIA DE PAI FRANCISCO E MÃE CATIRINA

“Catirina que só quer comer da língua do boi. Carne seca na janela, quando alguém olha pra ela, pensa que lhe dão valor. Ai Catirina poupa esse boi. Ai Catirina poupa esse boi. Que quer crescer […].” (Catirina, Josias Sobrinho[1])

Pai Francisco e Mãe Catirina – lustração de Ricardo Pontes, 2021.

Em uma fazenda, no interior do Maranhão, morava um casal de escravos negros, Catirina e Pai Francisco. Catirina estava grávida e desejou comer a língua do boi mais bonito da fazenda. Todos os dias ela pedia ao seu marido para buscar a língua do boi, mas Pai Francisco dizia que ela estava ficando louca, porque se o Amo descobrisse, ele era um homem morto.

Os dias se passavam e Catirina insistia na ideia. Dizia ainda que se a criança nascesse com defeito ou morta, a culpa seria completamente dele. A conversa sempre acabava em choro.

Com medo dessa “praga”, Pai Francisca planeja como faria para pegar o boi, teria que ser a noite, no escuro, quando todos estivessem dormindo. Saiu ainda na penumbra, para atender ao desejo da mulher. Ao encontrar o novilho, o mata e leva a sua língua, acreditando que ninguém haveria de descobrir que ele teria sido o autor de tamanha maldade.

Quando o dia amanheceu, a notícia já havia se espalhado na fazenda e a ordem era achar o autor do crime e levá-lo para acertar as contas com o Amo. Procuraram muito e ninguém conseguia descobrir quem havia cometido essa atrocidade, até que uma moradora da fazenda, levantou a suspeita de que só poderia ter sido Pai Francisco para atender o pedido de sua mulher grávida.

Nessa altura, o escravo já havia fugido, com medo da morte. Sua mulher negava que havia sido ele. Então, começou a procura pelas redondezas. Os Vaqueiros, homens treinados e de muita coragem, conseguiram apanhar Pai Francisco. Desesperado com a perda de seu novilho, o Amo decidiu matá-lo. Chico chora, implorando para ficar vivo e poder criar seu filho. Pediu então ao patrão a chance de chamar o curandeiro para ressuscitar o animal.

O Pajé é chamado às pressas e vem acompanhado das Índias que participam do ritual. Depois de muito dançar e rezar, o boi urra e começa a correr pelo pasto. O Amo perdoa Chico e, em agradecimento a São João, Santo de sua devoção, oferece uma grande festa ao som das toadas em louvor ao divino milagreiro.

[1] Josias Sobrinho, cantor maranhense.

Quer saber mais?

SILVEIRA, Marla de Ribamar Silva. Nas entranhas do Bumba meu boi: Políticas e Estratégias para botar o Boi de Leonardo na rua. 2014. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2014. Disponível em:

Ouça Catirina: https://www.letras.mus.br/papete/1515088/