Na Amazônia é assim

Moisés José Rosa de Souza

Dizem que que na vida o que vale a pena é apenas o que se vive, mas o que ouvimos dos que amamos preenche vazios que nem imaginamos existirem. Meu pai, 90 anos, nunca teve oportunidade de frequentar a escola regular, mas na vida foi diplomado. Conta histórias que nos fazem aguçar os ouvidos para não perder nenhum detalhe. De tanto ouvir, resolvi recontá-las. Quem sabe também outros por elas se interessem.

Como deve ser uma boa história, as do meu pai sempre são ricas em detalhes que, certamente, me escapariam da mente se em algum momento quisesse recontá-las. Além de ouvir, decidi gravar para, um dia talvez, mostrar a gerações futuras que porventura não tenham o prazer de ouvi-lo ou, ainda, para escrevê-las, materializando pela escrita retalhos da vida, como faço agora.

Muitas histórias. Algumas vivi e delas lembro-me vagamente. Outras, conheço apenas de ouvido, como a que conto a vocês sobre nossa vinda para a região Amazônica. Um mundo de árvores, rios e perigos dentro do mundo de sonhos nossos e dos que para cá rumaram no final da década de 70 do século passado.

Movida pela propaganda do Governo da Ditadura Militar, que se instalara no Brasil há pouco mais de uma década – Integrar para não Entregar”, todos vinham em busca do Eldorado.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, escreveu o grande Camões. Com o desejo de mudança, muitos aqui chegaram. Era gente de todo canto do Brasil. Minha família veio de Minas Gerais, assim como milhares de outras oriundas dos estados do Nordeste, Sudeste e Sul do país. E assim se fez uma região eclética de jeitos, costumes, falares, cultura.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2009/07/090722_amazonia_timeline_fbdt

A abundância de água, fauna e flora exuberantes e terras férteis encantavam os que chegavam, mas mascaravam os perigos locais, como os que enfrentaram os primeiros europeus que se instaram na Ilha de Vera Cruz, no século XVI, e os que construíram a estrada de ferro Madeira-Mamoré, no final do século XIX, em Porto Velho, capital de Rondônia.

Fonte: Arquivo pessoal. Distrito 21 – 1975.

Fonte: Arquivo pessoal. Distrito 21 – 1975.

Fonte: Arquivo pessoal. Distrito 21 – 1975.

Distrito 21 – em 1977

Instruções do INCRA aos colonos em 1979

 

                                                                                                                

Muitos tiveram interrompida a esperança pelas doenças da região ou sentiram o impacto da morte de alguém da família no Distrito 21.

A localidade, que mais tarde passaria a se chamar Colorado do Oeste, devido à cor da água escura que corria em um de seus rios, foi palco para o Sarampo, doença infecciosa grave, causada por um vírus que pode ser fatal. Sarampo era um eufemismo da morte iminente.

Minhas irmãs e eu, ainda crianças, pegamos sarampo. Foi um deus nos acuda, diz meu pai. Sobrevivemos e hoje conto a vocês, sem pôr ou tirar, o que ouvi.

O Sarampo

            — “Que que o senhor veio fazer aqui? “O senhor é louco”!? “Não volta aqui mais não, pelo amor de Deus!” “Está morrendo menino em seguida aqui com sarampo”! “Todo dia morre gente com sarampo”! — disse a meu pai uma senhora que já morava na região.

Não podiam fazer nada meu pai e minha mãe. Os recursos escassos mal deram para pagar o pau-de-arara que nos trouxera, mesmo dividindo os gastos do transporte com mais duas famílias que conosco vieram.

Como o José, de Drummond, não havia espaço para fuga. “Minas não há mais. / José, e agora?”. O jeito era ficar, lutar e viver. Não morrer, se possível.

Dito e acontecido. Como alertara a senhora à qual pedira meu pai um copo d’água, minhas irmãs e eu pegamos sarampo. Uma delas, Maria, pouco sofreu. A outra, Aparecida – alcunha de Teca – e eu quase engrossamos as estatísticas de meninos derrotados pelo sarampo no Distrito 21.

Nem o enfermeiro, chamado de Médico pelas pessoas do local, deu jeito. Mas “Deus é muito bom”, como diz meu pai, apareceu D. Luiza.

— “Eu tenho remédio pro senhor lá”! “É sarampo. Não é outra coisa”!

As palavras de D. Luíza encheram de esperança meu pai e minha mãe. Sabugueiro. Sabugueiro era o remédio. Sabugueiro é um arbusto com bagas pretas e flores brancas, que serviram de enfeite para a morada eterna dos que o sarampo levou. No nosso caso, foi a salvação.

     D. Luzia acertou no diagnóstico, no remédio e nos cuidados.

— Quando sair sarampo, evitar recolher, viu! — alertou ela.

E o sarampo explodiu em nossos corpos pequenos e indefesos.

— Nasceu sarampo igual. Saiu sarampo, acabou a febre. Cuidar para ele não recolher, porque se recolher, mata logo. — conta meu pai, certamente com a mesma emoção de outrora quando, agradecendo a Deus a providência, percebeu que seus filhos estavam a solvo.

Saiu o sarampo. Veio a fome.

— Vocês danaram a pedir galinha… Eu fui caçar galinha para comprar.

Meu pai percorreu os sítios próximos à procura do nosso alimento…

— Ninguém tinha galinha pra vender — relembra meu pai.

De tanto procurar, encontrou uma com um vizinho. Nem o fato de ela estar choca impediu meu pai de comprá-la para saciar a vontade de seus filhos com sarampo de comer galinha. 

— Ela estava até gorda. Vocês comeram, hein! — conta, rindo da situação.

Manoel de Barros, o poeta pantaneiro, escreveu que “os vazios são maiores e até infinitos”. Não me lembrava do ocorrido, nem que comera carne de galinha choca. Desconfio que o poeta tem razão, porque pelas palavras do meu pai, pude reviver pedaços de uma época que, pela tenra idade que tinha, não ficaram gravados na memória, mas de algum modo preenchem os espaços vazios de minha existência.