Áudio de uma conversa entre Adriana e Marinho, guia na Serra da Capivara, que deu origem à história que vem a seguir.
Mata e rocha na Serra da capivara
Mata e rocha na Serra da capivara
O Pé-de-Garrafa Gritador
Dagoberto Buim Arena
Era domingo de dezembro de caatinga verde. Domingo de B-R-Ó-BRÓ. O sol mal apareceu no céu e já mordia a pele de Faustino no quintal, na preparação para a caçada. Pedrim, grudado no pai, acompanhava os gestos de arrumação das coisas: a espingarda, o saco, a vasilha d’água, a farofa com pedaços fritos de mocó.
– Com quem o pai vai? – perguntou, com jeito de quem queria enrabichar.
– Com o Zé de Don’Ana.
Pedrim achava engraçado. Todo Zé tinha sobrenome da mulher. Zé de Don’Ondina, Zé de Don’Engrácia, Zé de Don’Iracema. Cada domingo era um Zé que ia com o pai, o Faustino, sem sobrenome de dona. O pai calçava o chinelão de couro quando Zé de Don’Ana chegou prosa.
– Tá pronto, Faustino! Pedrim também vai? É pertinho, ali na serra do Alto do Cruzeiro. Dá prá ver daqui do sítio.
– Vai não. Só tem 8 anos. Dá trabalho pra andar, pra comer! E ainda pode aparecer o Pé-de-Garrafa!!
Um arrepio de medo arrepiou Pedrim. Ouvira muitas histórias do pai sobre o Pé-de-Garrafa. Era um gritador que gritava na mata para alertar a bicharada e afugentar caçadores. Era o protetor da caatinga e dos seus animais. Quando o caçador apontava a arma, ele gritava, dono um vozeirão imenso, como um fantasma gigante. Pedrim tremia só de pensar. Não queria caçar longe de casa não. Era só pelo quintal, com estilingue na mão.
– Que Pé-de-Garrafa que o quê!! – zombou Zé de Don’Ana! Conversa pra mocó dormir!
– Não zomba não!! Que tem, tem!! – murmurou Faustino, enquanto ajeitava a espingarda no ombro.
– No meio da tarde a gente tá de volta, Pedrim. Diga à mãe pra se preparar pra limpar bicho hoje.
– Tá bom, pai!
Encostado na cerca, Pedrim viu os dois se afastando em direção ao Alto do Cruzeiro, lá mais no alto da caatinga. A janta do domingo seria de carne de caça.
Pela trilha, velha conhecida, pisada e repisada, os dois caçadores desviavam dos espinhos dos galhos, dos rabos de raposa e olhavam para o chão para não bater o pé em algum espinhento assento de sogra. Zé de Don’Ana continuava no mesmo assunto.
– Pé-de-Garrafa é história de medroso! Com espingarda na mão não tem onça, não tem jararaca, não tem Pé-de-Garrafa que me faça recuar.
– Cuidado com o que fala, Zé! Eu não creio, nem descreio!! Um dia eu estava caçando com o Zé de Don’Ondina. Quando apontei pra um mocó, saiu um vozeirão gritado de dentro das brechas da rocha. Não esperei pra ver!! Caí fora, na hora!! Zé de Don’Engrácia já ouviu ele respirar forte e bufar!! E ele não mente!!
As árvores retorcidas da caatinga foram escasseando à medida que chegavam perto das rochas. Eram duas grandes paredes altas. No meio, o sol entrava pouco. As árvores cresciam mais do que suas companheiras de caatinga. Eram majestosas árvores de galeria. Umidade, silêncio quebrado por cantos de pássaros, cheiro de terra verde e reentrâncias de rocha onde se escondiam mocós.
– Vamos quietar aqui, neste canto mais escondido pra esperar mocó! Nem é preciso procurar! É só ficar de tocaia! – disse, baixinho, Faustino, com receio de acordar a ira de Pé-de-Garrafa!!
Acomodaram-se sob a sombra das árvores ao pé de uma rocha que dava visão direta para as tocas dos mocós que tinham fugido quando ouviram as pisadas das sandálias de couro espremendo as folhas mortas no chão.
Dois mocós desconfiados logo botaram o focinho de fora para conferir a segurança.
– Espera mais, orientou Faustino! Pegaremos os dois!
Nem acabou de falar e já ouviu o tiro dado pelo companheiro. Assustados, os mocós se esconderam na toca. Ele errou o tiro.
– Agora complicou! – reclamou Faustino! O mocó fugiu e os outros não vão botar o focinho pra fora! E se o Pé-de-Garrafa escutou o tiro, ele pode aparecer por aqui!!
– Que Pé-de-garrafa nada! – esbravejou Zé. Vamos comer e esperar os bichos!!
A prosa baixa escorria pela boca de Zé de Don’Ana enquanto mastigava farofa com goles d’agua. Contava feitos e bravuras. A conversa era tão baixa, para não espantar mocós, que puderam ouvir uma respiração longa, forte, quase ronco de dorminhoco e bufos. A conversa parou, a orelha levantou, o olho arregalou, a mão apertou o cabo da espingarda. Faustino gelou!
– O Pé-de-Garrafa!!
– Nunca vi onça virar gente! – desafiou Zé de Don’Ana.
– Pé-de-Garrafa não é gente! É metade bicho e metade gente. Da cintura pra baixo é bicho. Da cintura pra cima é gente! O pé é igual fundo de garrafa. Uma roda furada no meio. É quase um casco, como o de burro!! – disse Faustino, com voz baixa e olhos amedrontados.
– Quá! – desdenhou o outro. – O barulho vem detrás daquela rocha ali, onde tem aquela árvore grande. Vou buscar uma onça pra janta de hoje.
Imóvel, agachado e encostado em um paredão para não ser surpreendido, Faustino sugeriu:
– Vamos embora, Zé.
O companheiro nem ouviu, esgueirando-se por entre as rochas e arbustos. À medida que caminhava, o rumor dos bofes aumentava. O ronco se esparramava. Zé olhava para o chão à procura de pistas, apontava o ouvido para o alto, elevava o nariz para sentir o cheiro da bicha, dedo no gatilho para apontar e disparar. Procurava na terra entre as folhas, as marcas da pata, os riscos das unhas.
Aproximou-se da rocha e examinou o chão, pronto para contornar e atirar na bicha. Os olhos viram duas marcas, lado a lado. Abaixou-se para examinar. Onça não pisa com patas lado a lado!! Botou atenção!! Eram duas marcas redondas e no meio era oco! Não era pegada de onça!! Era pegada de…
Não deu tempo de pensar! Gritos amedrontadores explodiram por detrás da rocha! Os roncos cresceram, os galhos balançavam, o eco se espalhou pelo Alto do Cruzeiro. Zé de Don’Ana largou a espingarda, disparou de volta, sem medo de espinho de mandacaru, sem medo de pisar em coroa-de-frade. Não viu mandacaru nem rabo-de-raposa nem coroa-de-frade, nem nada. Perto da toca dos mocós, Faustino ouviu a gritaria e já sabia o que era. Zé chegou lanhado, camisa rasgada, pé com espinho e olhos apavorados.
– É ele, Faustino! Vamos sumir daqui!
A volta para casa foi rápida. Não teve janta. Não teve mocó na casa de Don’Ana, preocupada com o marido deitado na rede, silencioso.
Naquela noite, depois do café com farinha, na cozinha, Pedrim ouviu o pai contar a história. Antes de ir para cama, foi para o quintal urinar. Quando levantou a perna da bermudinha, ouviu gritos longos vindos lá do Alto do Cruzeiro. Correu para dentro e gritou assustado:
– Pai, vem escutar! Tem barulho lá na serra!
Faustino ouviu e sapecou:
– É o Pé-de-Garrafa Gritador!!
Naquela noite Pedrim dormiu com a cabeça escondida embaixo do travesseiro, sem fazer xixi.
Cacto Assento-de-sogra ou Coroa-de-frade
Cacto Rabo de raposa
Ilustração criada pela orientadora educacional Patrícia Berlini Alves Ferreira – Instituto Federal de Rondônia – DEPAE, com imagens do banco de imagens gratuitas do Pixabay e recursos do Cômica.
Belíssimo conto, Dago, prendeu minha atenção do começo ao fim, aliás finalizou de modo poético…o Pedrin nem fez xixi!
Obrigado e parabéns.
Obrigado, Kiko, meu grande companheiro de vivências quintanenses e de experiências com a linguagem.
O texto me fez lembrar que no Piauí, parte considerável das pessoas têm seus momes relacionados a alguém da família. Esposa/o , pai, mãe. Exemplo no texto Zé de Don’Ana. Como costumamos dizer: Maria de Zé Francisco, Antônio de Mundico…. a identificação familiar é uma característica marcante nessa região.
Gostoso de ler ….
Pois é, Hercília. Andando pelo Piauí a gente vai percebendo a cultura popular.
São costumes regionais que você muito bem conhece Hercilia.
Quanta riqueza de tantos ” Brasis” !!!!
A nossa intenção é que esses Brasis entrem nas salas de aula, Eliete.
Saboroso ! Permite entrar em um universo cheio de surpresas e novas descobertas.
Agradecemos a tua apreciação,Maria Lúcia.