Conversa entre Adriana e Marinho, guia local da Serra da Capivara.

Nas entranhas da caatinga, a escapada de Sapecão Mocó da pontaria de Toin do Mocó

Dagoberto Buim Arena

E tinha muita chuva, naqueles tempos, vô? – perguntou Sapequinha Mocó.
– Muita, respondeu Sapecão Mocó, sentado com o toco de rabo na grande rocha diante de sua toca. Mais abaixo, a massa preta, feita de urina e fezes, tinha um cheiro forte, percebido pelo lagarto verde que se esgueirou, sorrateiro, por entre as pedras.
– A Serra da Capivara não era como hoje não, disse.
– Vô, conta uma história dos tempos antigos!
O ancião coçou lentamente o focinho, ajeitou-se na rocha.
– São histórias contadas de mocó a mocó. E vêm de focinho em focinho, de boca em boca, de toca em toca, de rocha em rocha, e chegam até hoje. E você vai levar estas histórias para os outros mocós, quando eu morrer. Vai ou não vai?
– Vou sim, vô!
Bateu uma tristeza danada em Sapequinha Mocó. O vô, um dia, iria embora e levaria com ele as histórias. Esse dia não estava longe. Observava o cansaço do avô que nem saltava mais. Curioso, com olhos arregalados e orelhas em pé, imaginava a floresta verde, os animais grandes, as chuvas abundantes e olhava a caatinga diante de seus olhos. Uma lágrima rolou mansa.
Sapecão Mocó, sentado sobre a rocha, não viu a lágrima rolar dos olhos de seu neto e escorrer pelo focinho. Jogava o olhar para os paredões e para o infinito da caatinga. Lá longe, mas não tão longe, ele via telhados de casas de outro bicho grande: o homem.

Algum dia você viu o perigo de perto, vô?
Sapecão Mocó pensou um pouco, virou os olhos para o neto inquieto e fez suavemente brotar palavras de sua boca:

Quando eu era criança, um mocozinho como você, saía com meu pai para roer por aí. Não tinha tantos homens aqui por perto como hoje, mas tinha um que vinha sempre, com espingarda na mão e um saco na cintura. Quando estourava um tiro, a gente sabia que um mocó tinha sido morto. Esse homem era certeiro. Era uma correria doida da mocozada para se enfiar nas tocas e se esconder.

Um dia, saí com meu pai para roer. Rói aqui, rói ali, pula para lá, pula para cá, nossa toca na rocha foi ficando longe, longe. Quando percebemos, já estávamos no quintal da casa do famigerado Toin do Mocó, o matador de mocós. Na sombra de uma mangueira, sentado em um banquinho de pau, ele limpava sua espingarda. Meu pai olhou assustado. Paramos, sobressaltados. Sem ruído, sem pisar em folhas secas, começamos a nos afastar.

Com medo, dei um saltinho para sair mais rápido. Minha pata bateu em um galhinho seco caído no chão. Toin do Mocó já se levantou com a arma na mão e apontou para mim. De medo, não saí do lugar, paralisado, feito sapo diante de cobra. Fiquei parado à espera da morte. Ele apontou. Fechei os olhos e esperei o bummmm! Nem vi quando meu pai saltou rápido e ferrou as unhas nas pernas do homem. Ele deu um grito de medo, o dedo apertou o gatilho, o tiro saiu para o alto, longe de mim. O som quase estourou meus ouvidos.

Saltei feito louco pela caatinga e meu pai atrás, em fuga. Me espinhei em coroa-de-frade, rabo de raposa, rabo-de-oncinha e mandacaru. Mas não paramos. Logo encontramos nossa toca na rocha. Cheguei todo lanhado, me ardendo todo. Nos escondemos ali de Toin do Mocó, o caçador, bem longe do sítio desse homem que vendia mocó no espeto para os viajantes na beira da estrada, montados em cavalos e jegues.

Hoje a gente vive em paz. Não tem mais nenhum Toin do Mocó, nem tiro, nem nada. Só tem gente que vem aqui olhar os paredões e as rochas. A mocozada faz é farra, pulando daqui pra ali, só pra se exibir.

O velho e bom mocó parou de contar, limpou o focinho, fechou suavemente os olhos e começou a cochilar. Sapequinha Mocó encostou-se no colo morno do avô, fechou os olhinhos, enfiou o focinho entre as patas dele e ficou ali, protegido, ouvindo o seu coração bater suavemente, à espera de um novo passeio para roer raiz e de uma outra velha história para ouvir.