Conversa de tradutor com crianças leitoras

Crianças, vocês sabem que podemos ler histórias do mundo inteiro e, para que isso seja possível, contamos com o trabalho dos tradutores? Estes profissionais escolhem um idioma estrangeiro para estudar, como, por exemplo, o alemão, o espanhol, o francês, o italiano, o inglês, o tcheco e muitos outros. Conhecendo o português e outro idioma, eles selecionam textos que acham bonitos e importantes. Em seguida fazem a tradução.

Esse processo não é nada fácil. Sabem por quê? As palavras estão sempre encharcadas da cultura local da origem do texto. Vamos observar um exemplo interessante. A palavra queijo existe no francês, no italiano, no espanhol, no inglês e em muitas outras línguas, mas quando algum escritor usa a palavra queijo em seu texto, o sentido que essa palavra desperta na mente do leitor francês é um, de um brasileiro paulista é outro, e ainda outro quando se trata de um brasileiro mineiro. Os queijos feitos na França não são como os de São Paulo, nem como os de Minas. O jeito de fazer é diferente, o gosto é diferente; as pessoas são loucas por queijo em determinadas regiões e não são em outras. Cada vez que a palavra queijo aparece, ela traz o sabor especial do queijo e o modo de fazer com os utensílios daquele lugar.

Por tudo isso, uma tradução é sempre uma possibilidade de escrever o que o autor estrangeiro escreveu em seu idioma para outro idioma, mas nunca temos a certeza de que estamos conseguindo indicar os sentidos em português como o autor teve a intenção de registrar.

Vamos apresentar aqui como essas coisas acontecem. Escolhemos um texto de um escritor francês famoso, que vocês conhecem bem: Jean de La Fontaine. Traduzimos uma fábula que não encontramos em português, A leiteira e o Jarro de leite, que encontramos neste livro:

CAZIER, A. Fables de La Fontaine: Classées par ordre de dificulté. Paris: Armand Colin, 1912.

Vejam como está escrito o texto em francês:

O primeiro trabalho a ser feito é entender o que está escrito, buscar expressões que não existem em português, entender o que elas significam e encontrar uma expressão bem próxima à do sentido original. É preciso também estudar um pouco a cultura, a história da época em que foi escrito o poema. O grande problema é que não é possível saber tudo nesse mundo, por isso, algumas informações importantes sobre os significados das palavras o tradutor não conhece. É preciso viver muito para conhecer cada vez mais. Por isso, dizemos que a tradução é uma possibilidade de escrever em nosso idioma o que foi escrito em outro. É sempre possível que um outro tradutor encontre uma outra possibilidade melhor que a do trabalho anterior.

Vejam, a seguir, como ficou a primeira possibilidade de tradução.

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Primeira possibilidade

A LEITEIRA E O JARRO DE LEITE

La Fontaine

Perrete, com um jarro de leite na cabeça,

Bem colocado sobre uma almofada,

Pretendia chegar sã e salva à cidade.

Com roupas curtas, levemente, ela caminhava a passos largos.

Havia decidido ser mais ágil nesse dia,

Com uma única anágua e sapatos leves,

Nossa leiteira assim estava vestida.

Já contava em sua mente

Todo o preço de seu leite; empregando o dinheiro

Compraria um cento de ovos, faria uma grande ninhada.

Até então tudo ia bem devido ao seu cuidado diligente.

 

É, ela disse, para mim é fácil

criar galinhas ao redor de minha casa.

A raposa será muito esperta

Se não me deixar o suficiente delas para ter um porco.

O porco para engordar custará pouco farelo.

E babau, quando eu o tiver de tamanho razoável,

Terei, revendendo-o, um bom dinheiro.

E quem me impedirá de colocar em nosso celeiro,

Dado o preço que tem, uma vaca e seu bezerro,

Que verei saltar no meio do rebanho?

Perrete ali também salta, distraída em seus pensamentos:

O leite cai; adeus bezerro, vaca, porco, ninhada de pintinhos.

A senhora desses bens sai com um olhar triste,

sua fortuna assim se espalhou,

vai pedir desculpas ao marido,

Correndo o risco de ele se zangar com ela.

A história foi contada como uma narrativa,

Chamavam-na de Jarro de leite.

 

Qual espírito não vence o louco?

Quem não faz castelos em sonhos,

Picrochole, Pyrrhus, a leiteira, enfim todos eles,

Tanto os sábios quanto os tolos?

Todos sonham acordados; não há nada mais agradável.

Um erro lisonjeiro leva-nos então as almas;

Tudo de bom do mundo é nosso,

Todas as honras, todas as mulheres.

Quando estou sozinho, desafio os mais corajosos;

Eu me lanço, vou destronar o soberano da Pérsia,

Sou eleito rei, meu povo me ama;

chovem coroas em minha cabeça:

algum acidente me faz voltar a mim

Sou um João-Ninguém como antes.

Tradução: Adriana Pastorello Buim Arena

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Agora, aparece um problema que existe quando traduzimos textos feitos em versos! Eles têm rimas! As palavras rimadas em francês não rimam em português. E agora, o que fazer? Temos de encontrar palavras que rimem, que tenham o significado próximo para que a tradução seja fiel ao jeito de rimar os versos como fez La Fontaine. Para isso, é preciso trocar as palavras originais. Vejam como ficou essa segunda possiblidade.

Segunda possibilidade

A LEITEIRA E O JARRO DE LEITE

La Fontaine

 

Perrete, com um jarro de leite na cabeça,

Bem colocado sobre uma rodilha,

Pretendia chegar sem incidentes à cidade.

Com roupas curtas e leves, ela caminhava a largos passos.

Havia decidido nesse dia ter agilidade.

Com saia simples e leves sapatos,

Nossa leiteira assim estava vestida.

Já contava em sua mente criativa

Todo o preço de seu leite; empregando o dinheiro, inteligente,

Compraria um cento de ovos; dariam uma ninhada produtiva.

Até então tudo ia bem devido ao seu cuidado diligente.

“Me será bom, dizia ela, bem desperta,

Criar galinhas ao redor de minha casinha.

A raposa será muito esperta

Se não me deixar o suficiente delas para eu ter uma porquinha.

A porca para engordar gastará pouco farelinho.

E babau, quando eu a tiver de tamanho razoável,

Terei, revendendo-a, um bom dinheiro.

E quem me impedirá de colocar em nosso celeiro,

Dado o preço que tem, uma vaca e sua filhota,

Que verei saltar no meio da tropa?

Perrete de cima de seus sonhos, salta também pelo caminho:

O leite cai; adeus bezerra, vaca, porca, ninhadas de pintinho.

A senhora desses bens tem um triste olhar,

De ver sua fortuna assim se espalhar,

vai ao marido se desculpar,

Há um grande perigo de ele se zangar.

História contada como narrativa deleite,

Chamavam-na de Jarro de leite.

 

Qual espírito não anda pelos campos?

Que não faz castelos em sonhos,

Picrochole, Pyrrhus, a leiteira, enfim eles todos,

Tanto os sábios quanto os tolos?

Todos sonham acordados; não há nada de louco.

Um erro lisonjeiro invade então as almas;

Tudo de bom do mundo é pouco,

Todas as honras, todas as damas.

Quando estou sozinho, lanço bravos desafios aos mais corajosos;

Eu me lanço para destronar os poderosos,

Me escolhem rei, meu povo me ama;

Os diademas em minha cabeça são abundantes:

Algum incidente me faz voltar à lembrança

Sou um João-Ninguém como dantes.

Tradução e recriação literária: Dagoberto Buim Arena

É isso aí! Eu e o Dagoberto gostamos deste trabalho. É sempre desafiador. E você vai tentar um dia arrumar uma outra possibilidade para esse texto? Já estuda algum idioma estrangeiro?

Até a próxima tradução, criançada!