Áudio de uma conversa entre Dagoberto Buim Arena e Senhor Moura, da escola municipal José de Melo Gonçalves, localizada na Fazenda Paraíso, São Luís do Quitunde – Alagoas, que deu origem à história que vem a seguir.

O moleque da pinguela

Dagoberto Buim Arena


O riacho fazia uma curva, escondido entre uma elevação de rochas, de um lado, e a borda da mata, do outro. Espremido pelo paredão rochoso, os três metros de largura se tornavam dois. O seu nome, Paraíso, deu o nome para a Fazenda que de Furquia virou Fazenda Paraíso. Quem olhava da beira do trilho não via suas águas rápidas, agitadas e espumadas, um pouco profundas.
A pinguela feita de galho de um jequitibá caído não tinha largura para dois pés, lado a lado. Só cabia um atrás do outro, feito jeito de equilibrista em fio de circo. Um trilho saía do mato, desaparecia nas pedras, na pinguela, e reaparecia do outro lado, enfiando-se pelos arbustos da margem.
A pinguela da curva levava o passante para a vizinhança do lado de lá. O riacho lambia as pedras: chuá, chuá… De dia era uma música para os ouvidos. De noite, punha medo. Medo de levar susto do menino da pinguela. Medo de queda nas águas turbulentas. Zé do Amaro dizia ter visto. O Dito da Chã Torta não botava fé.
– Acredito nisso não. Um moleque assustador de gente na pinguela!! Eu passo lá de dia, de noite, de madrugada e nunca vi. Com três passos, pé à frente de pé, já estou do outro lado. – Ói que tem! – murmurava Zé do Amaro, com a experiência de ter visto. – De uns nove pra dez anos, magrinho, só de calção branco, feito de algodão de saco de açúcar, riso na cara sapeca e corpo molhado de água do riacho. Entra e sai, ri debochado até o passante cair. É perigoso ali na curva, nas rochas!
– Acredito nisso não. Hoje, que é sábado, vou à casa de Zé Venâncio de tarde. Vou voltar de noite. Amanhã estarei aqui pra dizer o que não vi. E nada me assusta. Nem pio de coruja, nem voo de curiango, nem riso debochado de moleque! – e, assim, deu por encerrada a conversa.
Domingo amanhecido, o Dito da Chã Torta não veio dar bom dia. O sol cresceu no céu e ele não veio cumprir o prometido. Ninguém o vira, ninguém recebera dele bom dia.
Zé do Amaro subiu a chã e perguntou à mulher que respondeu que ele fora para a casa de Zé Venâncio no sábado, de lá não voltou, nem mandou recado.
Desconfiado, desceu em direção ao riacho, pegou a beirada para botar olho em curva por curva, pedra por pedra, para os galhos debruçados nas águas barulhentas. Quando já via, de longe, a passagem da pinguela, abriu mais os olhos e os ouvidos. Só ouvia canto de pássaro preto, arrulho de juriti, água lambendo rocha. Na outra margem, viu galho quebrado, cipó solto chapeando a água. O olhar acompanhou o cipó, subiu a margem e se afundou para o meio da mata. Viu um homem sentado, olhando para o nada. Era o Dito!!! Correu pelo trilho, atravessou a pinguela, entrou na mata, abriu caminho com a mão, topou com o homem quieto.
– Que aconteceu, Dito?
O homem não moveu a cabeça, olhar parado. De sua boca começaram a sair palavras quebradas: riso, risada, pingo, pinguela, amola, moleque; palavras cubicadas: pé, mais pé, sem pé, não deu pé, em pé, fundo, fundura, noite escura; palavras engatadas: cipó, poço, poça, do poço saí cipó; palavras trituradas: o.m.l.q.d.p.g.l.r.u.n.m.c.r.a
Zé do Amaro abraçou o amigo molhado, lanhado, amparou-o pelo caminhozinho aberto entre os arbustos, ajudou-o a mudar pé e pé na pinguela, o levou para casa e o pôs a dormir, sob o olhar vigilante da mulher.
E assim ficou o Dito. O que fora dito ficou por não dito. O que se deu se escafedeu.