Françoise Morvan, na apresentação do livro Légendes d’Alsace, faz referência ao trabalho de Jean Variot, que no começo do século XX organizou, prefaciou e adicionou notas em uma obra chamada Lendas e tradições orais da Alsácia, traduzida do alemão por Paul Desfeuilles e publicada em Paris em 1920. Foi escrita originalmente em alemão por Auguste Stoeber (1808-1884), escritor responsável pela coleta e publicação de histórias da Alsácia. Nessa obra, Morvan informa ao leitor que Variot introduziu um depoimento de Stoeber, abaixo apresentado, sobre seu trabalho de coleta de histórias:

“Em 1836, publiquei com a colaboração de meu irmão Adolfo, pela primeira vez na Alsácia, uma pequena recolha de nossas lendas sob o título de Alsabilder (Imagens da Alsácia); depois, em 1842, publiquei o mais importante livro de Légendes alsaciennes (Lendas da Alsácia), com a colaboração de outros poetas nacionais. Naquela época, eu sonhava sobretudo com o interesse poético das coisas; não percebia bem o valor dessas tradições do ponto de vista da ciência. No meu amor pela minha terra natal, me dava prazer evocar os cenários dos tempos passados, percorrer as montanhas familiares, parando diante de vestígios de nossos castelos, capelas, conventos e outros monumentos; amava descrevê-los em poesia, restaurá-los pela imaginação, e contribuir, assim, para que o passado da Alsácia fosse amado pelos habitantes desse belo país.

Mais tarde, li com muita atenção e com reflexão as lendas dos irmãos Grimm, seus contos para crianças e para as famílias, com seus comentários e sua documentação; enfim, conheci a notável Mythologie allemande (Mitologia Alemã) de Jacob Grimm, os escritos de Mone, de H. Schreiber e outros, sobre as antiguidades e tradições célticas. Tive, naturalmente, uma outra ideia sobre o método de pesquisas em relação às lendas. Percebi que era preciso dar a esse gênero de coleta um caráter mais sério.

Eu me pus a trabalhar de acordo com os princípios de Grimm. Retomei todo o conteúdo de meu livro poético de lendas; estudei suas origens, sua localização geográfica, o aspecto dos lugares; fui cuidadoso com ornamentos, frequentemente suaves e falsos; me dediquei com uma exatidão escrupulosa, talvez excessiva, às vezes, à forma tão simples e já tão profundamente poética dos contos populares e das crônicas; me lembrei do conselho de Grimm: ‘A lenda popular é uma planta delicada que é preciso tocar de uma forma leve, senão suas folhas perdem o frescor e ela perde seu perfume próprio… Toda adição estranha pode lhe ser perigosa e retirar a sua beleza.”(STOEBER, 2010, p. 11-12).

O porquinho, história coletada e recontada por Stoeber

Era uma vez uma mulher que tinha um porquinho. Um dia, o porquinho correu para floresta para comer os frutos do carvalho. Quando ele já tinha comido muitos deles, a mulher lhe disse: “Porquinho, é hora de voltar!” Mas o porquinho não quis.

Então, a mulher se dirigiu ao cachorrinho e lhe disse: “Cachorrinho, é preciso morder o porquinho, o porquinho não quer voltar.” O cachorrinho disse: “O porquinho não me fez nada, eu não farei nada a ele”.

Então, a mulher foi em direção ao cajado e lhe disse: “Cajado, é preciso bater no cachorrinho, o cachorrinho não quer morder o porquinho, o porquinho não quer voltar.” O cajado disse: “O cachorrinho não me fez nada, eu também não farei nada a ele.”

Então, a mulher foi até o foguinho e disse: “Foguinho, queime para mim o cajado, o cajado não quer bater no cachorrinho, o cachorrinho não quer morder o porquinho, o porquinho não quer voltar.” O foguinho disse: “O cajado não me fez nada, eu não farei nada a ele.”

Então, a mulher foi em direção ao riozinho e disse: “Riozinho, apague o foguinho, o foguinho não quer queimar o cajado, o cajado não quer bater no cachorrinho, o cachorrinho não quer morder o porquinho, o porquinho não quer voltar.” Então, o riozinho disse: “O foguinho não me fez nada, eu não farei nada a ele.”

Então, a mulher foi até a vaquinha e disse: “Vaquinha, bebe para mim o riozinho, o riozinho não quer apagar o foguinho, o foguinho não quer queimar o cajado, o cajado não quer bater no cachorrinho, o cachorrinho não quer morder o porquinho, o porquinho não quer voltar.” A vaquinha disse: “O riozinho não me fez nada, eu não farei nada a ele.”

Então, a mulher foi ao açougueiro e disse: “Açougueiro, mate a vaquinha para mim, a vaquinha não quer beber a água do riozinho, o riozinho não quer apagar o foguinho, o foguinho não quer queimar o cajado, o cajado não quer bater no cachorrinho, o cachorrinho não quer morder o porquinho, o porquinho não quer voltar.” Então, o açougueiro disse: “A vaquinha não me fez nada, então eu não farei nada a ela.”

Então, a mulher foi ao carrasco e disse: “Carrasco, enforque para mim o açougueiro, o açougueiro não quer matar a vaquinha, a vaquinha não quer beber o riozinho, o riozinho não quer apagar o foguinho, o foguinho não quer queimar o cajado, o cajado não quer bater no cachorrinho, o cachorrinho não quer morder o porquinho, o porquinho não quer voltar.”

Então, o carrasco pegou o açougueiro.

O açougueiro disse: “Antes de ser enforcado, eu matarei a vaquinha”. A vaquinha disse: “Antes de ser morta, eu beberei o riozinho”. O riozinho disse: “Antes de ser bebido, eu apagarei o foguinho.” O foguinho disse: “Antes de ser apagado, eu queimarei o cajado.” O cajado disse: “Antes de ser queimado, eu baterei no cachorrinho.” O cachorrinho disse: “Antes de ser batido, eu morderei o porquinho”. O porquinho disse: “Antes de ser mordido, eu voltarei.”

Então, o porquinho voltou e nenhum fez nada de mal ao outro.

Tradução: Dagoberto Buim Arena

Referência

STOEBER, Auguste. Légendes d’Alsace. Collecte choisie et presentée par Françoise Morvan. Édilarge S.A. Éditions Ouest-France, 2010.

As fotos aqui expostas foram feitas por Dagoberto Buim Arena em visita ao Écomusée d’Alsace, France (Ecomuseu da Alsácia, França), em 2015.

Estudantes de história e de arqueologia, preocupados com a degradação do patrimônio de arquitetura da região da Alsácia, França, reuniram-se sob a coordenação de Marc Grodwhol, em 1971, para formar um grupo com o objetivo de preservar e salvaguardar as edificações tradicionais. Esse grupo inicial deu origem à Associação de Casas de Camponeses da Alsácia, fundada em 1973. As dificuldades para preservar as casas em seus próprios lugares de origem levaram o grupo, em 1980, a planejar um Museu Ecológico (Écomusée), em uma grande área na pequena cidade de Ungersheim, para receber casas desmontadas vinda de muitos lugares da Alsácia e ali remontá-las. Em 1984, com a doação de objetos, roupas, utensílios, ferramentas, a cidade museu foi aberta à visitação pública já com 20 habitações mobiliadas.

Para saber mais clicar no link: https://www.ecomusee.alsace/fr/