Foto: Adão Alves de Araújo

Apresentação

Bernardo Fernandes de Souza nasceu em 1938, em Monte Santo, na Bahia. Migrou para Quintana, SP, já casado, no início dos anos 1960. Trabalhou em roças de amendoim, inicialmente, e, posteriormente, dedicou-se à construção artesanal de cestos de bambu e cipós colhidos nas matas. Nos meses iniciais de 2024, aos 85 anos, quando sua história foi gravada, continuava coletando bambus e cipós para construir cestos.

A ele não foi dada, quando criança, a oportunidade de frequentar os bancos escolares. Suas experiências de vida foram narradas a Ana Estela Ferreira e Adão Alves de Araújo, professores em Quintana que coletam depoimentos de antigos moradores da cidade. Abaixo, há um trecho oral de suas narrativas, recortado e editado. Ouçam-no antes de lerem a história que virá depois dele. Nesse áudio, Bernardo fala de suas relações com a mata e com Caipora, a dona da mata. Sua curta narrativa foi literariamente recriada na história A Dona da mata, por Dagoberto Buim Arena.

Como sempre, o NAHum, ao recriar literariamente histórias orais, tem a intenção de oferecer às professoras e professores uma metodologia que valorize as memórias dos mais antigos. Desta maneira, as crianças podem ser ensinadas a recriar literariamente histórias da cultura popular de sua região ou de sua cidade. De um lado, os mais antigos pouco alfabetizados dão sua contribuição para a cultura escolar. De outro, as crianças, nas escolas, se humanizam, porque se apropriam da cultura oral de seu entorno, ainda viva na mente dos mais antigos, e aprendem, deste modo, a recriá-la e a preservá-la pela linguagem escrita.

Clique abaixo para ouvir antes de ler.

A dona da mata

por Dagoberto Buim Arena

Nardo acariciou o focinho de Nino, cabeça repousada sobre as patas encostadas no chão, orelhas meio caídas, de olhos dóceis, semicerrados. Lembrou-se de quando era jovem no engenho baiano, caminhante por matas e riachos. Dos mais velhos, tinha ouvido histórias das matas, dos seus seres, de seus protetores. Ouviu coisas do respeito devido e do cuidado respeitoso.

Viu o tempo passar indo para o mato colher cipós para fazer cestos; coletor e artesão, como os povos originários. Colhe cipós, respeita sempre os seres, as árvores, o mato. Colhe e vê tudo renascer, ano a ano, na fonte de seu ganha-pão: as matas.

Suas mãos lanhadas, calos grossos, unhas duras, acariciavam suavemente a cabeça de Nino em repouso. Deitado, o cachorro lia, com os olhos e com o faro, o momento de partir para o mato. Fiel guardião, sabia, pelos gestos de Nardo, que era dia de caçar cipós para a trança dos cestos. Os bambus amontoados, lascados e alisados, esperavam o trançado dos cipós, os desapertos e apertos, os nós.

A aurora já raiava para os lados do rio Iacri, de altas árvores com cipós. Levantou-se do banquinho. Nino, rápido, olhos fulgurantes, acesos, agitados, pôs-se sobre as patas.

As sandálias de borracha de Nardo não o protegiam contra dentes afiados e venenosos de urutus, jararacas e jararacuçus, mas amaciavam o seu passo na mata. Se cobra picasse, não morreria não. Amassava folhas curandeiras nas feridas. A protetora da mata do Iacri cuidava da ferida e da dor. Ele sempre soube que a mata tinha sua dona. Era desses seres que os homens não sabem ver, mas ele a sentia.

Pegou o facão. Com sandálias nos pés, saiu. Nino, na frente, cheirava o chão, passo a passo, no caminho para a mata. O sol subiu. Os raios já caíam pelas copas das árvores, quando Nardo chegou à porta do trilho de entrada. Aprendera com os antigos a fazer a reverência. Inclinou o corpo levemente para a frente, pediu permissão à Caipora, a dona da mata do Iacri, para entrar e arrancar os cipós, os grossos para suportar os bambus, os finos para fazer o alinhavado apertado e os nós. Murmurou o pedido, olhos voltados para as copas das árvores apontadas para o céu. Sacudiu as sandálias para tirar o pó da areia fina.

Nada ouviu além do sussurro das folhas chacoalhadas pela brisa da manhã. Tinha, então, a permissão. Botou os pés em marcha pelo trilho estreito. A Caipora protegia os seres da floresta e também o coletor de cipós, porque ele fazia parte dela.

Nardo andou, observou, escolheu, cortou, puxou, arrancou, acariciou e enrolou cipós. Cada cipó retirado da árvore era acariciado por suas mãos grossas. O cipó era seu pão, sua vida, seu trabalho, seu fazer, seu companheiro de longos dias, sua razão para viver. Sem cipó não haveria vida. Por isso os acariciava, um por um. Cada um deles tinha seus nós, suas curvas, sua cor, seus tons e sobretons.

Fez os feixes, enquanto Nino fuçava. Olhou para o céu à procura do sol entre as copas. Mirou, calculou e murmurou para o cachorro ouvir:

— 10 horas!

Subitamente, Nino latiu agitado, indo e vindo em direção ao dono. Ele entendia o seu cão. Era algum bichinho!

Largou os feixes, acompanhou os latidos, pôs devagar a sandália macia sobre as folhas e galhos secos, olhos atentos no chão. Viu um rabo de tatu fora de um buraco. Um robusto tatu-galinha amedrontado tinha se enfiado em seu buraco, ainda não de todo cavado. Imóvel, indefeso, cabeça dentro e corpo fora, estava enroscado na toca inacabada. Nardo agachou-se e pegou no rabinho para ajudá-lo a escapar dali.

— Solta o bichinho, deixa ele ir embora!

Uma voz clara para os ouvidos, como o céu para os olhos, tonitruante, veio de todos os lados, de baixo e do alto. Nino parou de latir. Um vulto-vento brusco sacudiu folhas e arrancou o chapéu de palha da cabeça do homem. Largou imediatamente o rabo, ergueu-se rápido, olhando em volta. Viu um vento-vulto, um risco-trisco, um rasgo de nuvem-cor-de-ébano. Apareceu, sumiu, reapareceu:

— Se você levar um bichinho daqui, não vai encontrar mais cipós nas árvores! Não vai ter cipó! Não vai ter cestos, nem pão! Nem trabalho, nem vida! – bradou a voz do vulto-vento-nuvem-cor-de-ébano.

A Caipora, a dona da mata, protetora de todos os seres e de Nardo também, supôs que ele fosse levar o tatu!

Tremulante, obediente, respeitante, assustado, disse, entredentes:

— Não, eu não vou pegar! Se estou falando que não vou pegar, eu garanto! Se falei que não pego, não pego! — prometeu obediente!

E confirmou a promessa:

— Eu sou da mata! Minha vida é colher cipó! Nada mato no mato, nem porco-do-mato, nem formiga, nem cobra, nem jararacuçu, nem urutu, nem jacu, nem tatu!

Não ouviu resposta dita. Sentiu um vulto-vento-nuvem vindo da árvore cor de ébano tocar seus olhos, sacudir de novo as folhas e se enfiar para o fundo da mata.

Voltou para casa, feixes de cipós na mão.

Nunca mais viu a Caipora.

Quando chega, ainda hoje, na porta do trilho da mata do Iacri, Nardo pede permissão e benção, sempre! De lá só retira cipós para, em cestos, dar nós.