Foto: Os músicos em Bremen na Alemanha.

Créditos: Dagoberto Buim Arena

Por Dagoberto Buim Arena

Os enunciados da linguagem escrita – objeto de ensino e de aprendizagem – são meios fundamentais no processo de humanização. A Alfabetização, portanto, não é o fim. A apropriação dos enunciados ideológicos também não é o fim, porque o porto orientador de chegada é o porto sempre móvel da formação humana. A linguagem escrita não é, para nós, um meio de comunicação, mas um mediador híbrido, composto por signos verbais e não verbais, de trocas sociais.

Não há enunciado sem um gênero que o acolha e não há um enunciado sem a substância da cultura e o tempero dos julgamentos, da valorização, da apreciação humana. Em seu processo de alfabetização, as crianças não se apropriam, por essa razão, dos enunciados escritos compostos por signos esterilizados, mas por signos que expressam a cultura histórica e social de uma nação, temperados com as particularidades que caracterizam as classes sociais e os posicionamentos políticos e morais em situações reais de vida. É esse enunciado o objeto de aprendizagem que assume seu papel na humanização porque é gerado na relação entre os homens e que se mantém vivo na escola em virtude da troca entre professores e crianças, considerados seres em desenvolvimento.

As referências

Temos, portanto, dois cuidados, entre outros tantos. O primeiro é o distanciamento de alguns princípios amparados nas ciências da natureza, tal como o da necessidade de desenvolvimento de consciência fonológica. O segundo é o de abrir espaços fronteiriços que abriguem conceitos e termos em nascimento. Nesse esforço de criar modos humanizadores de pensar a alfabetização, recompomos condutas intelectuais fundamentadas em estudos de áreas de certas vertentes da semiótica, da filosofia da linguagem, da psicologia, da didática e da antropologia, entre outros campos, que redimensionam e reposicionam a linguagem escrita nas trocas humanas. Intencionalmente, não usamos o termo discurso nem o adjetivo discursivo, porque, por nos alinharmos aos estudiosos de origem soviética, como Volochinov, Medvedev, Bakhtin, Vigotski e a alguns de seus seguidores, observamos que em vez de discurso melhor seria a escolha do termo enunciado para designar a manifestação concreta de um mediador das trocas humanas, que é também um termo mais adequado que enunciação. A respeito do emprego indistinto entre enunciado e enunciação, Sériot e Tilkowski-Ageeva recomendam:

Esta passagem, como muitas outras, mostra que vyskazyvanie designa enunciado (como objeto observável, realizado em sua unicidade e sua singularidade, e não enunciação, terminologia de Benveniste aqui anacrônica), implicando uma interrogação sobre as ‘instâncias subjetivas’. (nota [c], p. 164,VOLOSHINOV, 2010

Acompanhamos também as decisões de tradução por Sériot e Tilkowski, do russo para o francês, do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, de autoria de Volochinov, na qual os enunciados têm sua construção ancorada no conceito de trocas sociais e de trocas verbais, por isso seria redundante o adjetivo discursivo.

Sobre o emprego do termo discurso, Sériot, no artigo Generalizar o único: gêneros, tipos e esferas em Bakhtin, publicado na revista Línguas e instrumentos linguísticos 23/24 – Campinas: Capes-Procad – Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2011: Unicamp, 1997-2009, p. 80, comenta:

As versões francesa (1984), espanhola (1982) e inglesa (1986) do texto de RŽ foram traduzidas a partir do texto publicado em 1979, expurgado por Bočarov. Dificilmente podemos criticá-los, mas este fato merece ser mencionado. Desde que o artigo RŽ é conhecido na França, é considerado como uma evidência que a expressão rečevye žanry só pode querer dizer “gêneros do discurso”; em seu artigo de 1969, J. Kristeva escreve: “[Bakhtin] trabalha atualmente em um novo livro que trata dos gêneros do discurso” (1978, p.82), enquanto o tradutor americano de RŽ explica que “speech genres” é uma “boa escolha” (McGee, 1986, p. VII), sem outra explicação, reservando “discourse” para traduzir “slovo” e “speech” para “rec”. Este simples exemplo mostra a que ponto há tantas interpretações da terminologia de Bakhtin quanto há traduções. Comparação de três traduções de Problema rečevyx žanrov (1979):

Do mesmo modo, na página 264 o editor francofone nos adverte que o “título da edição original” é “O problema dos gêneros do discurso”, como se Bakhtin tinha redigido seu texto em francês, sem jamais colocar a questão de saber se “Problema rečevyx žanrov” pode e deve ser traduzido por “gêneros do discurso”, como se o problema da escolha da tradução não se colocasse, como se se tratasse de uma simples operação de trans-codificação, árdua com certeza, mas unívoca no final da operação. A confusão do verbal e do discursivo na tradução francesa é bastante embaraçosa.

Ora, Bakhtin não falou evidentemente de “gêneros do discurso”; posto que ele escreveu sobre os “rečevye žanry”, é destas palavras que se deve partir, e interrogá-las inicialmente, antes de qualquer discussão sobre as diferentes exegeses. Se tivessem traduzido rečevye žanry por registros da fala [registres de la parole], é sem dúvida uma direção totalmente diversa que teria sido seguida, uma outra filiação dos termos e dos conceitos que teria sido referida 14. Faremos aqui a escolha experimental em traduzir por “gêneros da fala” [genres de la parole] e estudar as consequências interpretativas desta escolha de tradução.

Há ainda outro termo que merece atenção. Em vez de comunicação, o conceito assumido por nós é o de troca verbal, que se sustenta no de troca social, por considerarmos convincentes os seguintes argumentos de Sériot e Tilkowski (2010):

A palavra obščenie pode ser entendida como ‘comunicação” ou por “trocas”. Daí “troca ideológica”: Volosinov utiliza sempre a palavra obščenie e não kommunikacija; esta Vološinov utiliza apenas uma vez para explicar a noção de mensagem. Essa oposição está muito presente na vida intelectual na Rússia. Por kommunicacija se compreende uma troca entre duas entidades estáveis e individuais, que não se modificam ao longo dessa troca (na verdade, trocam sem trocar), enquanto que obščenie é compreendida como o campo da existência de “sujeitos” que não existem fora dessa troca e separadamente um do outro. (Nota [d], p. 123, VOLOSHINOV, 2010)

VOLOSHINOV, Valentin Nikolaevic. Marxisme et philosophie du langage: les problèmes fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage. Nouvelle édition bilíngüe traduite du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowski-Ageeva. Limoges: Lambert-Lucas, 2010.

O tempo das resistências

Ao aprender como os homens trocam cultura, como dialogam pelos enunciados da linguagem escrita, as crianças, com o estatuto de sujeitos ativos nessas trocas, ao se apropriarem desses enunciados, humanizam-se. O porto de chegada não é, por essa razão, a própria apropriação, a própria alfabetização, mas a humanização por meio dela constituída. A alfabetização não é também ponte entre a criança e a humanização, já que encarna em si mesma o próprio desenvolvimento. As experiências de professoras, relatadas na seção Eu faço assim, indicam esses caminhos que queremos abrir. Este boletim pretende, com sua circulação, se posicionar como espaço de resistência contra a brutalidade da desumanização escancarada em políticas, planos e métodos, concretizados em livros, cartilhas e apostilas de fácil consumo, e, também, como contraponto à literacia e ao alfabetizar-letrando, oferecer as possibilidades para a elaboração, nas salas de aula, de práticas de alfabetização potencialmente humanizadoras. Este é o espaço também para a ousadia e para a escuta da voz das crianças. Sem sonho, ousadia e escuta, a vida e a alfabetização definham, abraçadas uma à outra.