Conversa entre Dagoberto Buim Arena e Senhor Moura, da escola municipal, localizada na Fazenda Paraíso, São Luís do Quitunde – Alagoas.

Fulozinha

Dagoberto Buim Arena

– Batiza logo essa menina ‑ recomendou a avó, assim que Nizinha nasceu.

– Tá demorando pra batizar! – alertou o avô no dia do primeiro aniversário.

– Eu quero ser a madrinha de Nizinha! – pediu a vizinha que morava do outro lado do córrego, no dia do segundo aniversário.

– Pode crescer pagona não! Cuidado com Fulozinha! – advertiu, jogando os olhos lá pro lado da mata.

No dia do terceiro aniversário, Nizinha pediu de presente o batismo na igreja matriz de São Luís do Quitunde.

Na capela da Furquia vinha padre de vez em quando, em dia de São João. E só.

– Sábado a gente vai ‑ dizia o pai.

– Domingo a gente vai ‑ dizia a mãe.

Era preciso fazer curso, ouvir discurso. Entrava mês, saía mês e Nizinha foi crescendo assim, pagã.

Dias depois do quarto aniversário, sem festa, sem missa, sem igreja, sem batismo, Nizinha pegou a colher de pau, a cuia do coco, três pedrinhas e foi fazer comidinha atrás do galinheiro. Ajeitou-se na beira do trilho que ia pra mata e pôs-se a fazer comidinha-de-faz-conta.

– Nizinha! – gritou a mãe.

– Tô aqui, mãe, fazendo comidinha!

– Hummm!

Bota água no fogo, escolhe o feijão, descasca a macaxeira, prepara o milho do cuscuz. A mãe tinha cinco mãos, muitas panelas e pernas rápidas pra fazer o almoço e levar pro marido no roçado de macaxeira. Corre daqui, corre dali, o tempo voou, o galo cantou.

– E Nizinha? – perguntou a avó, sem levantar os olhos, debruçada sobre o crochê.

– Fazendo comidinha atrás do galinheiro! Nizzzzinha!! – chamou-a, enquanto mexia o cuscuz.

Nada.

– Nizzzzzinnnnha! – insistiu com a voz mais forte.

Nada. Largou a colher e correu pra detrás do galinheiro.

– Nizinha sumiu!

Gritou, gritou, correu pra lá, correu pra cá. Correu pra borda da mata! Esgoelou-se toda. Nada! Só a cantoria da passarada. Desesperou-se. Voltou pra casa.

– Nizinha sumiu!

– Fulozinha levou! – exclamou a avó, deixando cair o pano e a agulha no chão. E completou:

– Não batizou, Fulozinha levou!!

Não teve almoço, não teve café. A vizinhança toda acorreu pra procurar Nizinha. A tarde chegou, o sol esmaeceu, a noite apareceu, o som da mata mudou. Vez em quando, o som de uma gaitada zombeteira, contida, varria o arvoredo: qui, qui, qui, qui!! Ora era um assobio fininho, longo: fiiiiiiiiiiiiiiii!

– É Fulozinha ‑ explicou seu Marinho da Carrocinha, o mais velho e experiente morador de Furquia. E completou:

– Sinto um arrepeio com esse assobio! É Fulozinha, sem tirar nem pôr! Levou Nizinha! Tem de esperar o dia amanhecer.

– E como é Fulozinha? – perguntou a mãe, aflita!

Seu Marinho coçou os tocos de barba, aprumou os ouvidos, botou o dedo nos lábios:

– Escuta só o assobeio e a gaitada!!

Os poucos minutos em silêncio foram quebrados por um qui qui qui arrepiante e um fiiiiiiiii estridente.

– Nunca ninguém viu ‑ explicou seu Marinho da Carrocinha ‑, mas é uma moça, de vestido branco e cabelos desgrenhados. Vive na mata e fica à espreita de menina pagona!! Umas, ela leva pra virar outras Fulozinhas, em outras matas. Outras, ela deixa como lição para a mãe, para o pai e para todo mundo saber que é preciso batizar as crianças, principalmente as meninas! Amanhã eu subo a chã e olho lá de cima. Quem sabe Fulozinha largou Nizinha por aí.

A mãe, angustiada, cochilou junto com a avó, sentadas as duas na porta da casa, olhando pro escuro do terreiro e da mata.

O sol nem tinha saído e seu Marinho estava no alto da chã. De lá via os canaviais ondulando sob os primeiros raios. Via o brilho do verdor da mata molhado pelo sereno da noite. Via longe, via tudo, mas não via Nizinha. Um trilho longe entrava pela mata, dela saía, serpenteava um canavial, subia uma chã, descia de lado e entrava em outro morro coberto por um arvoredo bem fechado.

Quem sabe Fulozinha teria escondido a menina pagona lá pro lado do Riachão?

Desceu, olhos no chão, olhos no canavial. Subiu a chã de um lado, desceu do outro, esgueirou-se pela beira da mata. Andou, andou, olhos abertos, ouvidos atentos. Só passarada. Nem um riso, nem um assobio, nem arrepio. Entre um rumor e outro da passarada, ouviu um chorinho murcho, soluço entrecortado, cansado, suspiros longos.

Pé ante pé, sem barulho no pé, sem galho quebrado com as mãos, viu uma chinelinha rosada largada, depois outra, mais à frente um rasgo miúdo de pano branco. O soluço ficou mais ouvido. Olhando pro chão, Seu Marinho deu de topo com Nizinha, deitada ao pé de um jequitibá. Meio assustada, meio alegre, ela soltou um gemido apertado:

– Seu Mariiiinho!!

Ele a abraçou, botou no colo. Ouviu um qui qui qui rápido e um assobio fininho que o arrepiou todo. Passos ligeiros comeram os trilhos de volta. Não perguntou a Nizinha nada de Fulozinha. Nem ela nada disse. Nem à mãe, já em casa, que perguntava:

– Foi a Fulozinha, foi a Fulozinha?

Nizinha emudecia e nada contava. Nem seu Marinho contava, a quem perguntava, que tinha visto um rasgo miúdo de pano branco enroscado perto do jequitibá, lá no Riachão. “Melhor deixar pra lá”, pensava, enquanto sentia um arrepio percorrer o seu corpo todo.

Seu Moura