O personagem desta história, João Grande, foi descrito por um pescador da Praia da Pedra do Sal, em Parnaíba, litoral do Piauí, em 2022. Gravada por Adriana Pastorello Buim Arena, foi recriada literariamente por Dagoberto Buim Arena. Ouçam primeiramente os poucos segundos de gravação, antes de lerem a história.

Fonte: Dagoberto Buim Arena

João Grande, o pescador

Dagoberto Buim Arena

As ondas da maré cheia castigavam as pedras da Pedra do Sal quando Severino e Minervino levantaram o peso de ferro e empurraram o barco para o mar.

A lua cheia, depois da meia noite, brilhava no céu, prateando as águas, as pedras, o barco e os rostos enrugados dos dois pescadores.

– É pra ter peixe hoje ‑ gritou Minervino, animado.

– Sei não. E se for noite e hora de João Grande? – lançou o companheiro a pergunta levada pelo vento.

– Né não! Lua cheia! Meia noite e pouco! Ele vem não! – disse Minervino, seguro.

– O dia é nosso, a noite é dele! – disse Severino, temeroso.

O vento roncou forte, a vela inflou, o barco pulou as ondas da barra, as luzes da praia sumiram, a rede foi lançada ao mar.

A madeira do barco rangia chorosa com o movimento das ondas. O vento, a lua, o barco, o bate-bate da água no casco, o silêncio dos homens, o geme-geme da madeira e nada mais.

– Vamos puxar a rede!? – disse Minervino, sem voz de mando, sem voz de convicção.

– Não vi pulo de peixe! – murmurou Severino, desconfiado!!

Minervino se calou. Levantou os olhos para o céu aberto, estrelado. Sós, os dois ali, mais o barco e as estrelas. Nem peixe como companhia.

– Não tem peixe! Não estou gostando! – arrematou Severino, de olhos e ouvidos bem abertos.

Esses olhos, preocupados, perceberam a silhueta de um vulto enorme deslizando rápido sobre as ondas, muito rápido, sem barco, com rede nas mãos.

– É o João Grande!! É noite de penitência dele! – gritou assustado! Ele tá pegando os peixes pra levar pra longe daqui!!

– E é mesmo! Tá espantando os peixes pra longe de nós!! – gritou, incrédulo, Minervino.

– Vamos embora, Vino! Ele vai virar a nossa canoa! É um gigante esse João Grande!

– Puxa a rede, Nino, que eu puxo o ferro da âncora!

João Grande se aproximou gigante. O seu rosto, sulcado de rugas, guardava dois olhos imensos, testa larga e cabelos poucos na cabeça redonda. Os braços musculosos saíam das mangas rotas de uma camiseta sem cor grudada no peito forte. As mãos seguravam uma imensa rede que se esparramava sobre as suas pernas nuas, musculosas. Vestia um calção da cor das águas do mar. Os pés enormes saíam e voltavam para o fundo, passo a passo.

Seus olhos faiscantes se cruzaram com os de Minervino e com os de Severino. Abriu a boca imensa, soltou um urro que estremeceu o barco e fez andar o vento que desenrolou a vela do pequeno mastro. Seu andar e seu urro movimentaram as águas. Levaram pra longe os peixes.

A vela içada, a rede recolhida, o ferro levantado e o vento forte fizeram o barco navegar rumo às luzes da praia e das pedras da Pedra do Sal.

Os dois pescadores, agarrados ao mastro e ao leme, aportaram sem peixe, mas ainda com o urro e com a imagem de João Grande a impressionar seus ouvidos e seus olhos.

Mal o barco tocou a areia, saltaram e o puxaram para bem longe das ondas da maré cheia.

Cansados e assustados, entreolharam-se:

– Era a noite e a hora de João Grande! – disse Minervino!

– Bem que desconfiei ‑ completou Severino, olhando para o mar.

Passo a passo, em silêncio, caminharam pelos trilhos, iluminados pela lua, que levavam a suas casas. Voltaram sem peixe, mas traziam na sacola da vida a imagem da figura que os amedrontou.

João Grande, o protetor dos peixes da Pedra do Sal, continua a andar pelas águas da barra e a proteger os peixes. Vive sempre a espantar pescadores que pescam em noite de lua cheia, de lua minguante, de lua crescente, de lua nova.